QUANDO A HISTÓRIA FOR CONTADA PELAS TRAVESTIS

Hora de pensarmos a história do Brasil pela perspectiva LGBTQIA+.

Amara Moira

Foto da exposição "Orgulho e Resistências: LGBT na Ditadura", no Memorial da Resistência de São Paulo.

— Mona, aqüenda o ocó, que o ocó é bem de aqüé!

Hoje, quando até no ENEM o bajubá (ou pajubá) caiu, talvez que essas palavras já sejam bastante familiares, nem precisem de tradução, mas desde quando elas existem, desde quando elas são referência para a comunidade travesti? Como estudiosa da história travesti, questões como essa super me interessam, daí a surpresa de, em meio a uma matéria televisiva de 1985 (ano em que nasci!), ver essa frase sendo dita, precisamente essas palavras, mais alibã, maricona, uó... coisa incrível!

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Onde isso se deu? No "Comando da Madrugada", programa sensacionalista bastante longevo e que transitou por vários canais da TV brasileira, comandado pelo jornalista Goulart de Andrade. Nesse específico episódio, Andréa de Mayo faz uma produção babadeira no jornalista para que ele, toda montada, passe uma noite entre as travestis que se prostituem no centro de São Paulo. É a própria Andréa quem diz a frase, aludindo à "linguagem própria" que as travestis criaram, e é ela também quem estará ao seu lado em boa parte da aventura. Dá pra assistir pelo YouTube, no preciosíssimo canal "Arquivo Transformista".

Para quem não é travesti, um programa como esse possivelmente será entendido apenas como instrutivo, mas para nós, junto com o prazer de ver (ou até relembrar) esse outro momento da existência trans e essas figuras que muitas vezes só conhecíamos de nome, vem também o gosto amargo pelo circo que fazem a nosso respeito, nos tratando como animais exóticos e ameaçadores que precisam ficar atrás das grades e só podem ser conhecidos por meio das câmeras.

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Um dos momentos mais absurdos se dá ao final da matéria, quando a polícia chega e sai prendendo todas as travestis que encontra pelo caminho. Com a total conivência do apresentador, que teve autorização da polícia para filmar o processo inteiro, do enquadro à revista abusiva dentro da delegacia (chegando a mostrá-las nuas, inclusive). O crime cometido por elas? "Vadiagem", artigo 59 da Lei das Contravenções Penais, de 1941, em vigor até hoje, ainda que não seja mais aplicada: "entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita".

Ou seja, se você estiver apta para o trabalho, mas não possuir vínculo empregatício, você pode ser presa por isso. Pra que serve uma lei dessas? Para perseguir a população pobre, para obrigá-la a aceitar qualquer emprego, mesmo que precarizado e mal remunerado. É isso ou prisão. Não à toa a primeira versão dessa lei é do Código Penal de 1890, pouco após a Abolição da Escravidão ter tirado a população escravizada das senzalas para jogá-la nas favelas que começavam a surgir.

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Prostitutas desde o começo estiveram na mira dessa lei. O curioso, no entanto, é que a partir da metade do século XX, magistrados passaram a defender que ela não deveria ser aplicada no caso da prostituta cisgênera (dado que essa prostituição teria "uma importante função social, qual seja, a de preservar a moralidade dos lares, a pureza dos costumes no seio das famílias"), o mesmo não se verificando no caso da prostituta travesti, pois esta, ao contrário da cisgênera, "explora parasitariamente uma anormalidade pessoal", não social¹.

Em outras palavras, a prostituta cisgênera faz o que faz porque é pobre e, a despeito de quão criticável a atividade seja, ela tem um papel social relevante... mas daí a dizer que a prostituição exercida por travestis também seria "um mal necessário" vai uma distância, né? Pelo menos na opinião dessa sociedade hipócrita, transfóbica.

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A demanda pelos serviços sexuais de travestis sempre existiu e, quando todo o restante da sociedade simplesmente fechava as portas para elas (como em boa medida ainda faz), elas foram descobrindo que, pela prostituição, conseguiriam viabilizar suas existências. E quando essa sociedade se deu conta de que, mesmo com todos os obstáculos e violências, mesmo assim elas estavam conseguindo se fazer notar no cenário das grandes cidades, decidiram forjar uma nova interpretação pra "Lei da Vadiagem", dessa vez sob medida para perseguir especificamente travestis. O que durou pelo menos até o fim do século XX, senão mais.

Guido Fonseca, delegado que se notabilizou pela perseguição às travestis durante a Ditadura Militar, assim se manifestou a respeito dessas detenções: "Mesmo que ele [a travesti] ficasse quatro ou cinco dias no xadrez, ele sofria prejuízo, porque não ganhava o suficiente para pagar o aluguel, a prestação do carro... Ele começava a se conscientizar de que aquilo que ele fazia não dava o suficiente para sobreviver. Ele tinha de ou sair da área do Quarto Distrito [jurisdição do delegado] e ir para outra área onde não havia repressão, ou arrumar emprego e viver de outra profissão". Destransicionar e buscar algum emprego precarizado ou seguir sofrendo prisões arbitrárias, se endividando, até acabar morta ou ter que desaparecer dali, eis as opções disponíveis. Por isso a importância de reconhecermos, hoje, a importância das que vieram pavimentando o nosso caminho desde lá atrás, quando nossas dores eram entretenimento na televisão.

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Não fosse a pandemia e eu recomendaria expressamente a que quem estivesse na capital paulista que corresse até o Memorial da Resistência de São Paulo (ali do ladinho da Sala São Paulo e da Estação da Luz), para ver a exposição "Orgulho e Resistências: LGBT na Ditadura". Lá, fotos das travestis detidas nessas operações se encontram expostas, junto com outros tantos materiais incríveis que nos ajudam a pensarmos a história do Brasil pela perspectiva LGBTQIA+ (No site, é possível acessar o catálogo belíssimo da exposição). Passou da hora de aprendermos a contar a história por essa perspectiva, ein?

PS: Era pra ser uma coluna sobre a Andréa de Mayo, outra figura absurda da história travesti, mas acabei me perdendo (ou me encontrando) nessas linhas sobre a perseguição às travestis prostitutas. Tema totalmente relacionado com a Andréa e, na próxima coluna, vocês vão saber por que.

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¹ As duas citações saíram do texto "Prostituição masculina", último capítulo do livro História da prostituição em São Paulo (1982, p.230 e 233), de Guido Fonseca.

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