Travestis lésbicas e/ou bissexuais: um pouco de histórias

Hoje parece até difícil imaginar o contrário, mas só muito recentemente travestis conquistaram o direito de reivindicar uma orientação sexual não hétero.

BuzzShe

Imagem de capa: Reprodução - Netflix - Sense8

Numa das crônicas que enfeixam o livro "Frente e Verso - Visões da lesbianidade" (Brejeira Malagueta, 2010), a escritora Laura Bacellar defende que existiria algo de muito distintivo por trás de textos escritos por autoras lésbicas, algo que homens, "tanto gays quanto héteros", não conseguiriam reproduzir:

"um romance sobre duas mulheres assinado por um homem não me convence" (p.62). Ela fala ainda que, na sua experiência como editora da Brejeira Malagueta, recebia inúmeros originais e conseguia facilmente perceber quando a narrativa havia sido escrita por uma mulher e quando por um homem, trazendo um exemplo que me parece paradigmático (p.62):

"Um dos textos, assinado por "Bárbara", tinha situações ótimas de teatro do absurdo com uma travesti que mora com sua mãe evangélica fanática e acaba se envolvendo amorosamente com uma mulher. Ri com a acidez característica do humor gay, mas eu nunca acreditaria que Bárbara é uma mulher."

Coitada da Bárbara, nome de uma ex namorada minha, aliás, o que torna tudo ainda mais absurdo. Hoje, parece até chocante uma afirmação como a da Bacellar e creio que nem seja necessário gastar muita saliva explicando o close errado, mas isso é porque tem se tornado cada vez mais comum encontrar mulheres trans e travestis em relacionamentos com outras mulheres, sejam elas cis ou trans. Percebam, no entanto, que a crônica saiu em livro onze anos atrás, o que é importante por revelar o quão recente é a descoberta da sociedade, e mesmo da própria comunidade LGBTQIA+, de que pessoas trans podem, sim, ter orientações sexuais diversas.

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Orientações diversas são tema inclusive da nossa literatura, como é o caso de um dos capítulos finais do meu livro "E se eu fosse puta" (hoo editora, 2016), onde falo sobre envolvimentos afetivos com mulheres, ou então do relato autobiográfico que Márcia Rocha, uma das travestis que pioneiramente reivindicou o direito à lesbianidade, publicou em "Vidas trans - A coragem de existir" (Astral Cultural, 2017). Numa passagem do relato, ela aborda diretamente a questão, refletindo sobre o seu medo de, após iniciada a transição, não poder mais se relacionar com mulheres (p.124):

Reprodução | Vidas Trans - A coragem de existir (Astral Cultural, 2017)

"Foi nessa época que descobri que eu podia, sim, chamar a atenção e ser bastante desejada por mulheres lésbicas. Ainda que por um tempo, logo depois que me assumi, eu tivesse achado isso impossível, imaginando que não poderia haver nenhum tipo de atração entre mim e elas, essa teoria caiu definitivamente por terra quando percebi o sucesso que fazia. Rolava uma química, várias trocas de olhares e uma atração que eu jamais imaginaria ser possível, o que por si só já dava uma outra perspectiva ao meu futuro amoroso, ainda que não houvesse inicialmente nenhum relacionamento sério à vista."

Para quem não seja mulher trans ou travesti, pode parecer inesperado que mulheres cis, tanto lésbicas quanto bissexuais, sintam atração por nós, mas é uma atração que a gente rapidamente descobre que existe, e independente de quanta passabilidade cis a gente tenha (ou seja, todas as envolvidas sabem muito bem o que está acontecendo... a questão é: como resistir a uma beldade trans/travesti, não é mesmo?). Outra mulher trans famosa a tocar no assunto é Fernanda Farias de Albuquerque, que, em sua autobiografia "Princesa" (Nova Fronteira, 1995), fala sobre uma prostituta com quem conviveu e que era bastante invasiva em sua abordagem (p.67):

Reprodução | a Princesa (Nova Fronteira, 1995)

"Gilda era lésbica, os homens não lhe bastavam. Queria a mim, queria trepar comigo. As putas me disseram: Se apaixonou por você, Fernandinha. A maldita esticava as mãos, me pegava entre as coxas. No início, na confusão da brincadeira geral, não entendi aquele desejo. Depois tudo veio à tona."

É necessário dizer, no entanto, que o reconhecimento de orientações sexuais que fujam da heterossexualidade é conquista recente mesmo dentro da própria comunidade T. Que o digam as tantas vezes em que, por me relacionar com mulheres, tive a minha identidade questionada por outras pessoas trans e travestis. E, nisso, mesmo relacionamentos com homens trans acabavam motivando semelhantes questionamentos, pois, dentro de um grupo tão marcado pela exclusão e pela deslegitimação, apenas o envolvimento afetivo-sexual com homens do tipo mais padrão poderiam ser aceitos.

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Coisas mudaram muito nesses últimos anos, tornando possível inclusive que surgissem mais e mais vozes na literatura explorando esses afetos, vozes como Diana Salu, autora de "Cartas para ninguém" (padê editorial, 2019, p.86):

Reprodução | Cartas para ninguém (padê editorial, 2019)

"trans. travesti. mulher travesti. mulher. mulher? feminina. masculina. às vezes. sapatão. lésbica. com l de língua de lambe e de larga mão do seu preconceito por que tem muito mais coisa que dá pra fazer com um corpo que tem neca além de sexo-penetração-hetero-cis-normativo. com qualquer corpo aliás. a pele é o maior órgão do corpo."

Vozes como Raíssa Éris Grimm, autora de "Sapaprofana" (padê editorial, 2018), onde encontram-se poemas como (p.45):

"Ouvi que eu não era mulher.

Disseram também que precisava aprender a ser homem.

Depois ouvi que virei mulher,

que deixei de ser homem.

Depois ouvi que sempre fui mulher

e que nunca fui homem.


Dentro de mim,

tudo foi sempre uma bagunça.

Caos de nomes, memórias, sensações,

misturadas nesse corpo que eu

nem sei mais como entender.


Não sou mais aquele

com quem você quis casar.

Me tornei aquela

que te deixa com ciúmes pelo seu namorado.

Mas eu não quero namorado.

Nem casar.


Me pergunto se o beijo dessa boca

tem o mesmo gosto

que você provou -

se a textura do meu toque

te alcança o mesmo prazer

que você conheceu.


Você que sempre teve medo de lésbicas...

te contaram que

você já transou com uma mulher?


(mas será que

sempre fui mulher?)"

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Mas, voltando ao começo do texto, 2010 marca não somente a publicação de "Frente e verso", é também o ano de lançamento de outra obra que traria o envolvimento afetivo entre uma mulher cis e uma travesti para o centro dos holofotes: "Elvis e Madona", filme belíssimo dirigido por Marcelo Laffitte e que, no mesmo ano, foi transformado em romance por Luiz Biajoni. Obra pioneira como só ela, nem os próprios autores entendiam direito o que estavam produzindo, o que se pode ver na própria orelha da edição original, assinada por Laffitte: "E o que você vai ler é a história de amor entre as personagens Elvis e Madona, uma mulher e um homem. Ou um homem e uma mulher, como queiram".

Reprodução - Elvis e Madona (2010)

Elvis é uma mulher cis lésbica, Madona uma travesti que, até conhecer Elvis, se entendia como heterossexual, mas à época sequer tínhamos condições de nos indispor diante desse tipo de gracejo. E, se tivéssemos condições, acredito que a crítica iria atacar antes o enredo, por retratar uma travesti se envolvendo com uma mulher cis, e só depois a questão do gênero. Onze anos depois, vulgo hoje, somos brindades com o relançamento desse livro pela editora Bazar do Tempo, agora totalmente revisto para corrigir cisices como essa da orelha. Com essas correções, talvez agora seja possível saudar tanto o livro quanto o filme como os marcos que são, obras pioneiríssimas em celebrar a possibilidade de orientações sexuais múltiplas para mulheres trans e travestis.

Reprodução | Capa da nova edição de "Elvis & Madona", 2021

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