CLAUDIA [A DIVA DA DÚVIDA] WONDER

Numa época em que as travestis recém se faziam notar no cenário das grandes cidades, Claudia aproveitou para inventar um caminho distinto, até então impensável: fez-se cantora de punk rock.

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Claudia Wonder posando sobre uma cama, segurando um cigarro e exibindo um dos seios.
Claudia Wonder posando sobre uma cama, segurando um cigarro e exibindo um dos seios.

Reprodução

Vejam bem, eu nasci em 1985, a Linn da Quebrada em 1990, e, quando eu finalmente assisti a um seu show, parecia que nada comparável havia existido até então: era como se finalmente as travestis tivessem invadido, ocupado o domínio das artes. Mas isso não era nem de longe a verdade, pois, apesar do brilhantismo dessa travesti (e mesmo das que despontaram junto ou logo após), ela só estava onde estava porque outras tão abusadas quanto, mas muitíssimo menos conhecidas, foram pavimentando o caminho que ela trilhou. E das abusadas artistas que foram forjando esse caminho, um nome sem dúvidas decisivo é o de Claudia Wonder (1955-2010).

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Numa época em que as travestis recém se faziam notar no cenário das grandes cidades, viabilizando sua existência quase exclusivamente através da prostituição precária, dos salões de beleza ou, no melhor dos casos, dos shows de glamour, Claudia valeu-se desses três trabalhos, mas aproveitou para inventar um caminho distinto, até então impensável: fez-se cantora de punk rock, reverenciada no udigrúdi paulistano, a ponto de chamar a atenção de figuras chave da nossa cultura, como um Cazuza, um Glauco Mattoso, um Zé Celso, um Caio Fernando Abreu.

Pense-se, por exemplo, no inusitado de, no começo dos anos 1980, ela posar nua para a revista pornográfica "Big Man Internacional" e, em vez de receber todo o cachê em dinheiro, trocar o grosso dele por lambe-lambes para a divulgação de seu show "O Vômito do Mito" (expressão curiosa, considerando-se os dias de hoje, mas que, para Claudia, representava o vomitar da ideia de que travesti só serve para fazer dublagem).

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O título do show, aliás, foi tirado de um poema que ela musicou de Glauco, figura que seria chave da Geração Mimeógrafo, não fosse o fato de sua produção (brilhante!) explorar obsessivamente aspectos tabus da sua própria existência: a temática da cegueira, atrelada à sua homossexualidade e à preferência escancarada por práticas sexuais fetichistas (nas quais ele assume sempre a posição submissa).

A poesia marginal não tinha condições de lidar com tanto desbunde, assim como o próprio movimento LGBTQIA+ da época, o que levou Glauco a tornar-se uma figura solitária das nossas Letras e militância. E, assim como ele, Claudia, que bem no auge da pandemia do HIV/aids realizou uma performance inesquecível no lendário clube Madame Satã: após despir-se de uma capa com a bandeira do Brasil, ela entrou nua, com uma máscara de demônio, numa banheira cheia de um líquido vermelho (groselha), simbolizando o sangue — show de hard rock, a groselha sendo jogada em cima de todo mundo para desmistificar o medo irracional que o tema então suscitava

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Não bastasse isso, ela ainda afirma, com certo orgulho, ter sido a primeira travesti tanto a posar mostrando o genital, quanto a gravar filmes com sexo explícito (vários são os títulos de pornochanchada que contaram com sua participação). Cenas suas de nudez rolaram também na montagem inédita de "O homem e o cavalo" (1984), de Oswald de Andrade, realizada pelo Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa, quando ela substituiu Sônia Braga como a Camarada Verdade.

Por sinal, acabo de me lembrar que no bajubá das travestis de Campinas, "cláudia" significa "gozo", "a cláudia gritar", "gozar" — uma homenagem, será? Não sei. Mas sei que ela defendia, sim, uma outra relação da travesti com o próprio corpo, com o próprio prazer, resistindo ao máximo ao que ela chamava de "imposições sociais": numa de suas entrevistas, ela chega a afirmar que só colocou prótese porque, quando vivia em Paris, apenas travestis com peito eram contratadas para shows. Questão de sobrevivência portanto, ainda que ela achasse o máximo ter um corpo andrógino, ostentando atributos que a cultura dominante não sabia decidir se eram masculinos ou femininos.

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"Diva da Dúvida", uma das suas canções mais emblemáticas, compõe, junto de pérolas como "Travesti" e "Atendimento", seu álbum de música eletrônica "FunkyDiscoFashion" (2007). Da experiência punk rock dos anos 1980, destacam-se suas produções com as bandas Jardim das Delícias e Truque Sujo, dentre elas "Barra Pesada" (versão afrontosa de "Walk on the Wild Side", de Lou Reed), "BatGirl" e "Jardim das Delícias". Seus temas de predileção eram a travestilidade, a prostituição e o sexo.

Pra conhecer mais sobre sua trajetória escândalo recomendo tanto o livro de crônicas que ela publicou, "Olhares de Claudia Wonder" (Edições GLS, 2008), quanto o belíssimo documentário "Meu Amigo Claudia" (2009), de Dácio Pinheiro. O título deste último vem de uma crônica a seu respeito que, em 17/06/1986, Caio Fernando Abreu publicou no jornal O Estado de São Paulo. Caio, que se tornaria um dos principais admiradores e divulgadores de Claudia, lá escreve: "meu amigo Cláudia incorporou, no cotidiano, a mais desafiadora das ambigüidades: ela (ou ele?) movimenta-se o tempo todo naquela fronteira sutilíssima entre o 'macho' e a 'fêmea'."

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Essa fixação cisgênera em usar ambos os gêneros para se referir a pessoas trans é, sim, um tanto incômoda, mas, por outro lado, há algo de incrivelmente libertador em perceber que nossas existências promovem um tal abalo nos binarismos. O que me faz pensar no Paul B. Preciado de "Carta de um homem trans ao antigo regime sexual": "Nossa maior urgência não é defender o que somos (homens ou mulheres), mas rejeitá-lo, é desidentificar-nos da coação política que nos força a desejar a norma e a repeti-la" (Um apartamento em Urano, 2020, p.316). Proposição com a qual Claudia estaria perfeitamente de acordo, acredito eu.

Tristeza da minha vida: sua última aparição em público deu-se justamente na Unicamp (em 10/10/2010), quando eu lá estudava, mas, como eu estava ainda presa ao meu cosplay de homem cis hétero, não tive coragem de aparecer no evento. E, já que mencionei essa data cabalística, termino apontando que ela, nascida em 1955, alcançou os 55 anos de idade, feito ainda hoje raro para a maioria das travestis, mas que, muito em função de wonders como ela, vem cada vez se tornando mais normal. Normalizemos o envelhecer travesti.

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Indicações de leituras feitas pela autora:

Um ano sem Claudia Wonder - por Neto Lucon

Ativista e ícone da noite de São Paulo, Claudia Wonder morre aos 55 anos - por Vitor Angelo

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