"Travesti não é fantasia" vai contra a própria história das travestis

O Carnaval é um laboratório de experimentações de gênero - e não apenas para quem já tenha carteirinha de travesti.

Inauguro a minha coluna em 2023, no BuzzFeed Brasil, avisando que este será o ano de trazer pautas espinhosas para cá. Não por amor à polêmica, porque isso não é do meu interesse, mas porque acredito que não devemos ter medo de reavaliar posições e de considerar outras perspectivas. 

Sem contar que discordâncias funcionam como desafios para mim, me forçam a sair da minha zona de conforto, e só por isso eu já as valorizo bastante. Corro o risco de ser cancelada? Certamente, mas espero que já tenhamos amadurecido o suficiente para podermos, pelo menos, discordar em paz, sem que ninguém seja transformade em inimigue por isso. Dentro dos limites da razoabilidade, é claro.

E vou querer começar justo por uma das frases mais escutadas nas redes sociais todo começo de ano, quando a festa mais popular do país se avizinha: "travesti não é fantasia". 

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Não que eu defenda o contrário, que travesti seja fantasia. O meu incômodo, na verdade, é o que se busca a partir dessa frase, ou seja, impedir pessoas que não estejam previamente certificadas como trans/travesti de se vestirem com roupas atribuídas ao gênero oposto no Carnaval.

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Eu própria talvez nem existisse caso o Carnaval não tivesse me permitido a experiência de reinventar quem eu era dez, onze anos atrás.  Longe de mim querer que o meu caso seja definidor do que é permitido ou não, mas me parece indiscutível que esse gesto de proibidor contraria tanto o significado do Carnaval, quanto a própria história da transvestigeneridade.

acervo pessoal

"Travesti" é uma palavra que, até os anos 1950, remetia a duas experiências específicas: a de atores e atrizes que encarnavam personagens de outro gênero no palco e a de figuras que se vestiam com roupas do gênero oposto no Carnaval e em bailes à fantasia. 

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Foi a partir dessas duas experiências que toda uma cultura de contestação às normas se formou e me espanta que, hoje, parte considerável da militância reivindique que esses dois laboratórios de experimentação de gênero, o teatro e a festa, só estejam liberados para quem apresentar, antes, a carteirinha comprovatória de que é travesti.

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Aliás, usei as expressões "roupas do gênero oposto" e "personagens de outro gênero" ali em cima, mas o que elas significam num tempo, como o nosso, tão questionador dos paradigmas de gênero e sexualidade? 

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Gritamos aos quatro ventos que mulheres podem ter pênis e homens vagina, aí na frase seguinte damos a entender que determinadas roupas são "de mulher" e que elas não devem ser usadas por quem se entende como "homem"? Me parece um baita contrassenso. O gesto anárquico que transpiram, de um lado, o Carnaval e, de outro, a cultura travesti, não orna com essa tentativa ingênua de normatização.

Não, não existem "roupas de gênero" nenhum, não se quisermos levar a sério a própria reivindicação que viabilizou as existências transvestigêneres. 

acervo pessoal

Nos sentirmos ofendidas com isso acaba sendo uma forma de apagamento da nossa própria história, pois foi nesses espaços que figuras tidas como homens há décadas, séculos atrás, foram forjando o direito de se vestir de outras formas, de se identificar de outras formas. Isso me lembra também a aversão que travestis e mulheres trans costumam nutrir pelas cdzinhas, como se o crossdressing não fosse o berço de boa parte da comunidade.

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O mais curioso é que, com as novas gerações de pessoas trans, talvez nem seja mais possível diferenciar, no olhômetro, um homem cis "fantasiado de travesti" e uma travesti considerada "de verdade". Já temos travestis de barba, pernas peludas, recusando o uso de hormônios, travestis que subvertem completamente o sentido de "feminilidade" e que, mesmo assim, fazem questão de serem chamadas de "mulher"... não vejo como essas novas experiências podem ser legítimas mas não as de uma pessoa supostamente homem cis que ouse brincar com as normas de gênero no Carnaval (até porque identidades não são tão fixas quanto gostaríamos de acreditar, não é?).

acervo pessoal

Como conclusão, gostaria de dizer que travesti obviamente não é fantasia, mas isso não impede que toda uma sociedade fique fantasiando conosco, se perguntando se é mesmo tão cis quanto lhe ensinaram ou se não poderia, talvez, quem sabe, veja bem, ser muitíssimo mais feliz, livre, vivendo num outro gênero. Ou, pelo menos, brincando com os gêneros. E não há lugar como o Carnaval para pôr à prova essas fantasias.

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