Vamos falar sobre bloqueadores de puberdade?

A difícil decisão entre ceder aos padrões ou fazer frente a eles.

Dias desses, conversando com uma amiga médica sobre a possível transição de gênero de uma criança, filha de uma amiga nossa, me espantei com a sugestão que ela deu: "Fala para a mãe procurar acompanhamento num espaço especializado, pois, caso esse desejo se mantenha, terão mais condições de iniciar o quanto antes o bloqueio da puberdade da criança". "Mais condições", no caso, quer dizer que, no Brasil, o acesso a esse procedimento para menores de 16 anos só existe em caráter experimental, ou seja, ele só pode ser feito em instituições que estejam sob protocolo de pesquisa, sendo reduzido o número de pessoas que podem se beneficiar dele.

No entanto, não foi esse o ponto que me espantou e sim o próprio fato de o bloqueio ter sido sugerido. Quem me conhece sabe que eu sou uma ardorosa defensora de feminilidades e masculinidades que rompam com o padrão cis, então, por mais que eu até apoie intervenções cirúrgicas e medicamentosas na reconstrução de nossos corpos, luto para que os moldes cisgêneros não sejam a régua que definirá se tivemos ou não sucesso em nossas transições.

O bloqueio da puberdade, com isso, seria nitidamente uma tentativa de evitar que o corpo desenvolvesse caracteres secundários em direção tida como distinta ao do gênero reivindicado. Exemplo? Na pessoa transmasculina não haveria o desenvolvimento de mamas e, na transfeminina, não ocorreria o engrossamento da voz, o aumento da massa muscular e a proliferação de pêlos (sobretudo no rosto). Porém, dado que uma das principais pautas transfeministas é afirmar a inexistência de caracteres corporais essencialmente femininos ou masculinos, por que razão faríamos o bloqueio da puberdade em alguém, não é mesmo?

Essa era a minha dúvida. Normalizando esse tipo de intervenção, é como se estivéssemos entregando os pontos e aceitando já a priori que, mesmo para sujeites trans, os padrões corporais tivessem que ser cisgêneros. E o pior, estaríamos planejando isso antes mesmo de a criança manifestar qualquer desconforto em relação ao seu corpo.

Minha amiga médica, cis, mas bastante inteirada dos debates trans, argumentou que isso não seria uma imposição, mas uma possibilidade, e que ela acredita que tanto a mãe quanto a criança deveriam ser informadas dessa alternativa, para terem o máximo de autonomia na hora de decidir. Faz sentido, total sentido, mas eu sentia tudo isso como uma enorme derrota. Minha namorada, travesti como eu, estava acompanhando a discussão e disse que, se ela tivesse tido essa oportunidade, nem pensaria duas vezes antes de aceitar, me perguntando então: "Você não faria?".

Eu não sabia o que responder. Por convicções ideológicas, quero acreditar que eu recusaria a oferta e preferiria repetir o caminho que fiz, de esperar a idade adulta e recorrer apenas ao bloqueador de testosterona e aos hormônios tidos como "femininos", construindo um corpo que fica num meio do caminho entre as noções engessadas/engessantes de masculinidade e feminilidade. No entanto, é tanta deslegitimação com que eu preciso lidar diariamente, são tantas as vezes que eu preciso corrigir o gênero que usam para se referir a mim (e quem dera esse fosse o maior dos meus problemas!), que talvez eu agradeceria se tivesse conseguido me aproximar um pouco mais da feminilidade hegemônica.

Nesse sentido, bloquear a puberdade seria até uma forma de proteção a essa criança, permitindo que ela sofresse menos o impacto da transfobia em seu futuro. Em contrapartida, isso acabaria servindo para reafirmar os moldes cisgêneros de masculinidade e feminilidade, não? Questões que preciso digerir um pouco mais, antes de construir minha posição a respeito.

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E você, já tem uma posição sobre o tema?

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