A perigosa busca por "homens de verdade" e os paradoxos da existência travesti

Não é por estarmos inventando novas verdades sobre gênero que conseguimos nos livrar inteiramente das antigas.

BuzzShe

Um dos momentos mais delicados do monólogo que estou escrevendo, esse famoso em pajubá, do qual às vezes libero trechos inéditos aqui na coluna, diz respeito ao medo sempre muito presente, entre travestis, de descobrir que seu namorado (ou o cara de quem você está afim) não é "homem de verdade".

Trago até entre aspas a expressão, porque ela é super problemática, mas ser problemática não quer dizer que ela não tem efeitos reais sobre nós e é disso que pretendo falar aqui.

Nenhum interesse em sair apontando dedos, acusando alguma mana de não ter se desconstruído o suficiente. Quem sou eu pra dizer o que quer que seja, aliás! Vasculhando fundo o baú da consciência, difícil existir uma que tenha conseguido se libertar de toda essa normatividade cis hétero que enfiam na nossa cabeça desde que nascemos.

"Homens de verdade", então. Para ilustrar o que seriam eles, pela ótica travesti, trago um dos livros mais impressionantes já escritos por Cassandra Rios (1932-2002).

Reprodução | 'A volúpia do pecado' (1948), de Cassandra Rios.

Escritora cis lésbica, autora de dezenas de obras e primeira mulher a superar a marca de um milhão de exemplares vendidos no Brasil, ela foi também pioneira em escrever sobre a dissidência sexual e de gênero (desde sua obra de estreia, "A volúpia do pecado" [1948], quando ela contava 16 anos) e a pessoa que mais sofreu com censura durante a Ditadura Militar. História invejável e, no entanto, uma grandicíssima desconhecida mesmo do movimento LGBTQIA+.

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Por quê? Bom, acredito que sobretudo por trazer narrativas incômodas, por fugir a representações comportadas, daí ela incomodar tanto conservadores quanto progressistas. Mas isso é assunto para outro dia. Hoje, quero falar sobre uma obra sua específica, obra que tenho inclusive dificuldade em imaginar como pôde ser escrita: "Uma mulher diferente" (1968).

Reprodução | 'Uma mulher diferente', (1968), de Cassandra Rios.

Romance policial, conta a história da investigação feita para descobrir-se o autor do assassinato da babadeira travesti Ana Maria. A obra já começa descrevendo a sua morte, mas ela ressurgirá nos depoimentos dos entrevistados, convertendo-se na grande protagonista da obra. Travesti empoderada, capaz de cobrar que respeitem seu gênero ("Feminalize o sujeito, por favor, quando se dirigir e referir a mim, sou Ana Maria! Meu nome é esse! Sou uma espécie diferente de mulher, apenas isso!") e, ao mesmo tempo, de afirmar a potência do corpo que tem ("De que me adiantaria ser mulher como as mulheres? Seria comum, vulgar! Assim sou eu que venço todos os dogmas e preceitos!"), porém no campo do desejo ela viverá um delicado paradoxo.

Isso porque, apesar de gostar da ideia de ser uma "mulher diferente", ela é cria de um mundo que só sabe pensar o gênero a partir do genital e esse (des)entendimento se faz sentir em cada um dos seus envolvimentos amorosos e afetivos. Num dos depoimentos dados, um ex-namorado seu expõe o que ele acredita ter sido a causa do término da relação:

"Com todo meu dinheiro e tudo que lhe ofereci, o que ela queria era amar. Encontrar um homem que chegasse a agredi-la se descobrisse que ela não era mulher. Mas que fosse na onda! Que não resistisse ao fascínio dela. Ao seu amor. É muito complexo... As emoções de Ana Maria dependiam de que ignorassem seu verdadeiro sexo. Que a confundissem. Depois, quando desfeito o logro, passada a estupefação do homem conquistado, ela se afastava. Não queria mais. Ia à procura de outros, sei lá onde! Não escolhia muito. Bastava ter aparência pelo menos, mas homem macho. Ela contava com deleite como namorara um estivador no cais e como apanhara quando o homem descobrira que fora enganado. Aquele era homem de verdade, porque não a quis. Ela sofria por isso, mas sentia prazer no próprio sofrimento e dizia empolgada — 'Fui amada por um homem de verdade'!"

Uma obra publicada 53 anos atrás, quando ainda dávamos os primeiros passos na construção de uma comunidade travesti, e Cassandra já conseguia vislumbrar um conflito que mesmo hoje ainda é central para boa parte de nós, isto é, a dúvida em relação a como somos vistas pela pessoa que deseja se relacionar conosco.

Reprodução | Foto de Cassandra Rios

Ana Maria é empoderada, sim, adora saber que bagunça a cabeça do povo, mas isso não significa que as babosices cis-hétero que ouvimos desde criança não tem peso em sua vida.

Ela, como inúmeras travestis, sonha em se envolver com um cara que nem desconfie que ela possui (ou possuiu) pênis, prova cabal de que ela foi vista e desejada por ele como mulher. Para Ana Maria, a certeza de que isso ocorreu só ficaria patente caso ela fosse violentada, após a revelação do genital com que nasceu. "Homem de verdade" seria, portanto, por definição o homem que teria aversão a se relacionar com uma travesti, daí ela se desencantar com os homens que, após o conflito inicial, continuassem dispostos a se relacionar com ela.

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Muitas travestis já conseguem dar um passo além e se relacionar, pelo menos, com homens que nunca antes se envolveram com travestis, elas se tornando as primeiras, as únicas.

Amara Moira em foto de Cintia Antunes 

Eis, inclusive, uma das maiores fantasias presentes no nosso meio. Junto com essa fantasia, a desconfiança permanente de estar diante de um travequeiro/t-lover, homem que já passou pela mão de várias, ou, pior ainda, de uma maricona. Ainda pretendo escrever sobre essas figuras aqui.

Percebem como tudo é complicado? Estamos inventando novas narrativas, novas maneiras de pensar o gênero e o que é homem/mulher, no entanto uma coisa é defender novas verdades e outra é conseguir libertar-se plenamente das antigas. Muito ainda tem que ser feito nesse caminho, até chegarmos ao dia em que só descobriremos o genital da pessoa por quem estamos atraídes na hora do vamovê, sem que isso cause risco algum à integridade de nenhume des envolvides. Quando estaremos preparades pra uma sociedade nesses moldes, só as deusas sabem.

Enquanto isso, vou escrevendo histórias em que a gente, ao mesmo tempo, ri e se desespera com esses paradoxos da existência travesti... só não achem que essas coisas existem apenas no nosso meio, viu? Se você está achando isso, é porque não entendeu o tamanho da encrenca em que tá todo mundo metido.

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