TRAVESTI OU MULHER TRANS: OUTRA VEZ ESSA HISTÓRIA?

"Não existe nenhuma diferença a olho nu entre as categorias de travesti e mulher trans, expressões sinônimas, o que não significa que sejam iguais."

Quantas vezes não fui chamada de "mulher trans" ou, pior, "transexual", a despeito de eu escancarar na minibio de todas as minhas redes sociais, assim como em praticamente todas as páginas do meu livro E se eu fosse puta (hoo editora, 2016), o fato de me compreender como "travesti"? Essa é, aliás, a palavra a que recorro sempre que me apresento num evento público e, no entanto, quando é outra pessoa e não eu a responsável por me apresentar, o mais comum é também eu ser enquadrada em alguma daquelas duas palavras referidas acima (sobretudo quando não leem um texto de apresentação escrito por mim mesma).

Duvido que seja o caso de simples má-fé. Em boa parte dos casos, são pessoas que me admiram, pessoas que me chamaram para participar daquela específica atividade, pessoas que querem me ouvir. E, apesar disso, dá-lhe "mulher trans", dá-lhe "transexual". Qual o motivo disso, então? A razão principal, acredito eu, tem que ver com a persistência do estigma em torno da palavra "travesti".

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Pra muita gente, essa palavra ainda hoje, 2021, é um xingamento. Crescemos numa sociedade que considerava maldita essa existência, figuras que habitavam as sombras, fortes e perigosas, por um lado, e, de outro, exercendo o mais terrível dos trabalhos, um que sequer deveríamos denominar trabalho, a prostituição, e esse imaginário segue bastante vivo hoje em dia.

Quinze anos atrás, quando eu ainda não tinha feito a minha transição, mas namorava uma travesti, lembro da minha própria família jogando na minha cara: "não acredito que você está se misturando com essa gente!" "Essa gente" que eu própria me tornaria, "essa gente" que ainda hoje, em muitas casas, não é considerada suficientemente gente para frequentar os encontros da família de bem, não é mesmo?

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Às vezes, a pessoa que pretere "travesti" nem pensa mais dessa maneira, mas fica na dúvida se a plateia terá uma compreensão semelhante, daí recorrer aos dois termos citados no começo, mais limpinhos, menos carregados de associações tenebrosas. Às vezes, também, a pessoa simplesmente não sabe como nos apresentamos e tem medo de usar "travesti", medo de a gente se ofender ao ser tratada por essa palavra. Sim, o que não falta são pessoas autointituladas "mulheres trans" ou "transexuais" que, chamadas de "travestis", se ofendem.

Um exemplo famoso disso: por volta do minuto 40 no filme "Douleur d'Amour" (1987), documentário sobre a realidade transvestigênere brasileira produzido pelo cineasta Pierre-Alain Meier, a modelo Thelma Lipp, principal rival de Roberta Close nos anos 1980, dá a seguinte resposta à pergunta "o que é um travesti e por que você não é um?":

"Um travesti é uma caricatura de uma mulher e eu não sou uma caricatura, eu sou uma mulher. Um travesti é exagero, quadris enormes, seios muito grandes, maçãs do rosto enormes, gestos abrutalhados, uma coisa indefinida que não é homem, não é mulher, que você olha e vê que é um homem vestido de mulher, que tem uma cabeça completamente diferente, que sai à rua pra chamar atenção, pra que as pessoas saibam que é um travesti. Então, eu não sou nada disso, não tenho a mínima intenção de ser isso. E é isso que faz com que as pessoas sejam agressivas com os travestis, porque os travestis também são muito agressivos com as pessoas, fisicamente também, na forma de agir, de tratar com as pessoas. Se acham, por exemplo, melhores que as mulheres, então eles fazem o exagero, o corpo. Então eu acho que é isso que me diferencia, eu acho que é isso que é um travesti que diferencia de mim, eu quero me misturar com a multidão, não quero sobressair na multidão, dá pra entender?"

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Decidi trazer a citação na íntegra, toda a fala de Thelma nesse ponto, para que o peso e extensão do estigma fiquem evidentes. O mais chocante, porém, é essa fala estar incluída num documentário em que participam várias travestis, como duas das bonitas já discutidas aqui na minha coluna, a poderosíssima Andréa de Mayo e a diva da dúvida Claudia Wonder.

Esta última, inclusive, respondendo a uma pergunta da entrevistadora no começo do documentário ("eu estou me sentindo perplexa! Por que você não nasceu como mulher?"), diz o seguinte: "Eu não nasci como mulher, porque eu não sou mulher, porque eu não tinha que ter nascido uma mulher. Eu nasci com o sexo masculino, mas depois, na minha adolescência, eu fui escolhendo a minha identidade". Simples, não é? E sem nenhuma referência a exagero, caricatura, gestos abrutalhados ou a ser melhor que mulher.

E o curioso é que, se uma pessoa tentar identificar visualmente qual é a travesti e qual a transexual, sem saber quem das duas é a Claudia Wonder e quem é a Thelma Lipp, a chance de erro é gigante. E o motivo é não existir nenhuma, absolutamente nenhuma diferença a olho nu entre as duas categorias: pessoas que, por terem nascido com pênis, foram criadas para ser homem e que, no entanto, rejeitaram essa identidade, reivindicando uma identidade feminina. Expressões sinônimas, o que não significa que elas são iguais, mas isso é motivo de uma próxima coluna... se preparem que o assunto é longo!

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