Os sentidos da transformação corporal para travestis

O que leva uma travesti a querer transformar tão radicalmente o corpo, mesmo que isso coloque em risco a sua vida?

Lembro da surpresa com que, em novembro de 2016, li a seguinte manchete do G1: "Transexual morta em 2000 tem nome social incluído em túmulo". A repercussão na comunidade trans foi estranha, as pessoas em dúvida se deviam celebrar a conquista macabra ou se ela era justamente uma denúncia do absurdo em que vivíamos. Agora podíamos morrer em paz, é isso? A transexual em questão, que sequer era transexual e, sim, travesti (mas isso é assunto para outra coluna), era Andréa de Mayo, figura tão controversa quanto incontornável da história transvestigênere do país.

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Confesso que eu não fazia ideia de quem era ela. Sua morte ocorreu em decorrência de uma cirurgia para a retirada de silicone industrial das nádegas e coxas, silicone que ela carregava em seu corpo desde os anos 1970. A quantidade de silicone no corpo, se ainda hoje é algo valorizado na comunidade travesti, à época era ainda mais, e não à toa João Silvério Trevisan diz que Andréa "afirmava orgulhosamente ter milhares de dólares em silicone aplicado no seu quadril de 114cm" (Devassos no Paraíso, 2018, p.236).

Procedimento extremamente perigoso, tanto por a substância não ser própria para o corpo humano, quanto por ser dificílima a sua retirada posterior, ele começa a se popularizar entre as travestis justo naquela década, junto com outras tecnologias de transformação corporal que tornariam a nossa existência cada vez mais marcante nas grandes cidades brasileiras. Quem o revela é outra vez o delegado Guido Fonseca, já citado na minha coluna "Quando a história for contada pelas travestis". Em sua História da prostituição em São Paulo, o delegado nos diz (1982, p.229):

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Da média e alta prostituição, pequena parcela conseguiu alcançar um dos seus objetivos mais caros, ou seja, uma semelhança quase perfeita com a mulher. Chegam a enganar até o mais perspicaz observador. Seus cabelos compridos ou perucas, seus vestidos, sapatos e bolsas aliados aos trejeitos femininos iludem a maioria dos homens. Além disso, fazem questão de trazer à mostra parte de seus seios (alguns volumosos) para melhor conseguir seus intentos. Tomam hormônios e submetem-se a pequenas cirurgias (introdução de silicone) para obtenção de formas mais femininas, visando principalmente o crescimento dos seios.

A mesma opinião é defendida numa matéria de página inteira de O Jornal (RJ), de 05 de dezembro de 1969, cujo título é: "Muitos andaram com homens supondo que fossem mulheres". Segundo a matéria, "os policiais afirmam que, na campanha de repressão, os travestis são os que mais trabalho dão porque, na maioria das vezes, a identificação torna-se muito difícil, tamanha a perfeição com que se disfarçam de mulher". Como explicado na coluna que citei acima, a identificação era importante porque a prostituta cisgênera não podia ser enquadrada na "Contravenção Penal da Vadiagem" (já que essa modalidade de prostituição era encarada como "um mal necessário" pela nossa Justiça hipócrita), mas a prostituta travesti sim, daí ser necessário encontrar maneiras de diferenciar uma da outra.

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Arquivo pessoal Kaká di Polly

Andréa de Mayo e Miss Biá.

Os hormônios a que Fonseca se refere são os anticoncepcionais, em versão injetável ou comprimido: produzidos para que mulheres cisgêneras não engravidassem, travestis rapidamente descobririam que, se tomassem essa medicação, como efeito colateral seus seios se desenvolveriam e a gordura de seus corpos seria redistribuída para partes consideradas femininas. Desde os anos 1960, quando a medicação entrou em circulação, nós a utilizamos, mas é sintomático que, na sua bula, até hoje não exista qualquer informação sobre o efeito que causa no corpo de mulheres trans e travestis.

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Esse apagamento (cínico, uma vez que as farmacêuticas sabem dos usos que fazemos e lucram horrores com eles) explica em parte a razão de, ainda hoje, recorrermos tanto à automedicação, travestis preferindo confiar nas instruções passadas de boca em boca na própria comunidade do que nas palavras de profissionais da saúde, muitas vezes transfóbicos. O que me faz refletir também sobre o que leva tantas de nós a fazer uso do silicone industrial, mesmo conhecendo os riscos.

Impedidas por séculos de existir, sob a justificativa de que o nosso corpo inviabilizaria a maneira como nos entendíamos, pensem o que não significou a descoberta de que, com os avanços da medicina e da indústria farmacêutica, agora seria possível transformar radicalmente os nossos corpos. Corpos, antes tratados como o problema, como o impeditivo da nossa identidade, de repente eles se mostram remodeláveis por completo e de forma permanente, o que passaria uma poderosa mensagem para a sociedade: "não vou voltar a viver como antes".


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Reprodução

Os riscos seriam altos, sobretudo no caso do silicone industrial, mas com ele também seria possível, da noite para o dia, conquistar um corpo que não devesse nada às mais cobiçadas modelos cisgêneras, a aplicação tornando-se, então, uma espécie de rito de passagem na comunidade. O que ajuda a entender o porquê de, mesmo hoje em dia, tantas travestis ainda recorrerem à substância. Andréa de Mayo foi símbolo dessa louvação do silicone, sobretudo quando mais jovem, mas também acabou se tornando em emblema de uma nova postura em relação às próprias ideias de transformação corporal que cultivamos na comunidade trans.

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Figura temida por todes que a conhecessem, ela foi também uma militante incansável pelos direitos da população LGBTQIA+. Numa matéria de 24 de abril de 1993 da Revista Manchete, intitulada "E Andréa vira homem", ficamos sabendo que, diante do número absurdo de assassinatos de travestis na capital paulista (16 em apenas 4 meses), foi criada a Associação de Travestis de SP para pressionar a Justiça a tomar providências. O tom de deboche atravessa toda a matéria, como se nossas mortes fossem uma grande piada, e o título é um bom exemplo disso, aludindo ao fato de Andréa, para representar a Associação, precisar fazer cosplay de homem cis para ser levada a sério pelo poder público (a matéria traz fotos das duas facetas da travesti).

Outra matéria icônica é a da Revista Trip de julho de 2010, onde Andréa é denominada "a última cafetina-travesti romântica de São Paulo". Sua vida é aqui retratada sem moralismos, abordando tanto o fato de ter morado na rua por anos, durante a adolescência, quanto aspectos mais sombrios da sua vida após tornar-se uma temível cafetina e dona de boate, com amplas ligações com o submundo. É dito, inclusive, que ela própria foi bombadeira ("aplicadora clandestina de silicone industrial") e que duas travestis morreram em suas mãos em decorrência disso.


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Andréa, que a princípio vangloriava-se do silicone que carregava no corpo, aos poucos foi desiludindo-se com esse mundo de beleza e glamour, cada vez se preocupando menos com ostentar uma imagem considerada feminina. Na entrevista (1995) que deu origem à matéria da Trip, o jornalista Lino Bocchini a descreve como "um travesti quarentão e desleixado", com "cabelo preso, olhar triste, voz firme, barba malfeita", fazendo pesadas críticas à própria ideia de travesti:


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O travesti está sempre vestido de palhaço, é Carnaval o ano inteiro. Acaba sendo duplamente falso: altera seu corpo e identidade e transmite uma alegria impossível. Quem é feliz deitando com cinco homens por noite, apanhando da polícia e de boy e sendo rejeitado por toda a sociedade?


Pode-se alegar que Andréa, poderosa como ela era, tinha condições para não se preocupar com padrões de beleza, mas talvez sua atitude seja reveladora também de uma nova postura em relação às noções hegemônicas de gênero. Se antes o corpo era o que impedia o reconhecimento das nossas identidades, obrigando-nos a drásticas transformações para legitimarmos a maneira como nos entendíamos, agora o que se começar a ver é um questionamento radical das próprias ideias de masculino e feminino, viabilizando narrativas de gênero que não nos tornam tão reféns de intervenções corporais.

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O mesmo silicone que Andréa aplicava, como bombadeira, a levaria a óbito em 17 de maio de 2000, curiosamente o Dia Internacional de Combate à LGBTfobia. Uma das principais causas de morte e de complicações de saúde na população travesti, ainda hoje pouco foi feito seja pela sociedade, seja pelo poder público para resolver esse problema. As soluções propostas até hoje, criminalização da prática, controle da venda da substância, ignoram por completo o que nos leva a recorrer a ela: o que leva uma travesti a querer transformar tão radicalmente o corpo, mesmo que isso coloque em risco a sua vida?

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Essa é a verdadeira questão que precisa ser encarada, respondida. Sem sabermos como lidar com ela, seguiremos assistindo incrédules a mais e mais mortes de travestis em decorrência da busca por um padrão inatingível de corpo. Mas agora pelo menos poderemos colocar nossos nomes sociais na lápide, né?

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