Dando o truque pra falar de sexo misturando autobiografia e ficção

A vontade de falar de sexualidade cada vez mais descaradamente é o assunto de hoje.

"o grão só de alegria e o olor de noigandres" (Arnault Daniel, poeta medieval, na tradução do concretista Augusto de Campos)

Uma memória erótica saudosa, dessas que até pouco tempo atrás eu julgava inconfessável, dado o inusitado da situação e o fato de ser um tanto tabu, era o prazer de sentir o cheirinho de suor da neca desaqüendando.

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Neca de travesti, no caso, aquele cheirinho de poucos segundos, sutil, da hora em que ela se liberta da calcinha elástica apertada, aprontando-se para receber o oral. A última vez que o senti nem sei quando foi, mas com certeza antes da minha transição, iniciada sete anos e pouco atrás. E sei que foi antes porque, desde que me assumi travesti, a despeito dos meus esforços e até das mudanças que a militância tem provocado, acabei saindo completamente do radar de interesse das demais monas (vocês nem imaginam o quanto a heteronormatividade impera em nosso meio, verdadeira obsessão).

Neca escapulindo da cueca, ou mesmo bubu da cueca ou calcinha, todas essas combinações têm também sua graça (sim, já vou avisando que eu, além de travesti, sou bi), mas não chegam nem perto da sensação que aqueles poucos segundos me causavam. Cheirinho discreto de suor, do tempo que a neca passou ali entocada, efêmero mas ainda muitíssimo vivo nas minhas recordações, nossa!

Se tem algo que me dá saudade dos tempos de ocó era isso: o ocó que fui, padrãozinho, não afeminado, era uma espécie de doador universal de prazer, capaz de interessar a homens cis (homens trans e não-bináries só vim a conhecer depois, mas nada indica que não fosse também possível o match), a mulheres cis e, sobretudo, a travestis.

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O período em que trabalhei como prostituta, já pós-transição, relatado no meu livro "E Se Eu Fosse Puta" (hoo editora, 2016; a partir da segunda edição ele vem como "E se eu fosse puRa", pois as livrarias estavam se recusando a vender um livro com a palavra "puta" na capa), foi quando testemunhei o outro lado da experiência, o gozo de não poucos clientes em desaqüendar, eles próprios, da calcinha a minha neca.

Reprodução | E se eu fosse puta / E se eu fosse puRa (hoo editora, 2016)

"Deixa que eu tiro", diziam, e lá iam eles, todo desajeitados, narigão a postos, tentando fruir ao máximo o aroma que só se desenvolve nessas condições... Eis um prazer que só conhece quem teve a sorte de se envolver com uma travesti.

Os mais experientes t-lovers asseguram: quem provou vicia, então você, se tem medo de se viciar, melhor continuar sem fazer ideia do que estou falando.

Ainda hoje é comum me dizerem o quão corajosa eu fui em publicar um livro sobre as minhas experiências como trabalhadora sexual ("E Se Eu Fosse Puta", 2016) e é chocante perceber que, em pleno século XXI, tenhamos ainda tantos bloqueios em falar sobre o que nos excita e em nos permitir vivenciar práticas sexuais que fogem à norma. Um dos feedbacks mais divertidos que recebi, aliás, foi o de uma amiga sapatão, cis, que começou a ler o livro no ônibus, a caminho do trabalho, e ficou inconformada ao descobrir-se, "às 5h46 da manhã", "excitada [...] com uns relatos contendo pau no meio".

Literatura é uma coisa doida, não? Essa lábia que ela tem, os caminhos inusitados pelos quais nos leva... ai de quem se deixe levar!

No entanto, uma hora me dei conta também de que, se eu viver noventa anos, serei até os noventa anos lembrada de que escrevi esse livro, o que me gelou a espinha.

Amara Moira | Foto de Juliana Meres Costa

Livro não é um post nas redes sociais que eu possa simplesmente apagar e vida que segue, é algo que perdura. E eu me expus demais nessa obra, coisas que podem parecer "corajosas" agora, mas que não sei se terão o mesmo significado, para mim ao menos, quando eu chegar, digamos, aos cinquenta, aos sessenta ou mesmo, sei lá, ano que vem. Daí o desejo de começar a me expor menos nos meus escritos ou, se for rolar mesmo exposição, que seja tão misturada com coisa inventada e coisa ouvida que ninguém seja capaz de dizer, com segurança, o que ali é e o que não é autobiográfico.

Movida por essa ideia, vou avançando no meu projeto de escrever um grande monólogo em pajubá: uma travesti narrando as experiências inusitadas que a vida lhe proporcionou, sobretudo no âmbito da prostituição. A violência babado sempre presente, os vícios que a carência cria, a busca incessante por um príncipe necudo encantado, ocó do tipo mais viril, a falta de aqué, os pedidos uó com que ela precisa lidar nos pegês, o tanto de vezes que ela só faz a pêssega, os equês dos clientes mas também os das outras travestis, os cheques, os truques, as elzas, os alibãs, a tia, as barganhas, as colocações, as transformações corporais, toda uma reflexão sobre o que é preciso para ser travesti...

Em suma, um mundo paralelo sendo trazido à tona e talvez seja preciso tempo até que ele possa ser compreendido pela cisgeneridade hétero e mesmo pela parcela da comunidade LGBTQIA+ que não tem tanta intimidade com a nossa cultura.

Não tem vilão e bonzinho nessa história, muito menos figuras desconstruídas repetindo o jargão oficial da militância. Tem, isso sim, a vontade de falar, de desentalar da garganta essa infinidade de causos reveladora tanto das nossas contradições quanto das da própria sociedade que nos criou.

Lembro sempre de uma amiga dizendo que, na adolescência, gostava tanto de dar, tinha dado já pra tanta gente, que achou que seria ótimo um dia trabalhar como prostituta: qual a surpresa dela, já nos primeiros clientes, ao descobrir que o que mais esperariam dela a partir de agora é que ela fosse ativa?

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Neca, a parte do corpo sempre usada para deslegitimar nosso gênero, o que faz com que muitas de nós desenvolvam uma relação de aversão a ela, mas ali nos pegês é justo o que mais querem ver em ação, para desespero de tantas de nós.

Reprodução | "Neca + 20 Poemetos Travessos" (O Sexo da Palavra, 2021)

Frustrações, então, atravessam esse relato, pondo à prova todas as expectativas de coerência (marteladas não só nas nossas cabeças, como nas de todo mundo) entre a expressão de gênero de alguém e as práticas que essa pessoa gosta de fazer na cama. Querem um exemplo?

"Adoro gongar maricona. Pior, tem umas que engana, até parece ocó, malão e tudo, aí cê vai na pira dela te tchacatchá, já arrebitando o edi, mas é piscar e, jesus, ela atacou sua neca. Vontade de dar na cara dessas sebosas. Teve uma uma vez, aquela necona odara, Amara do céu, que queria só dá... que dá o quê, ô! Vira esse edi pra lá, vem cá co'essa necona agora. Atórom! Ôxi, ôxi, misericórdia, a cona bibíssima, duríssima, queria dar, deu, mas não sai sem me comer, eu disse. Foi uó achar posição que entrasse, não tinha como, como que não!, glória e perdição desse edi. Aleluia! Dei o nome. Desespero é o nome. Foi-se o tempo em que apareciam aqueles bebêzinhos super ativos, hoje tudo maricona larga. Argh! Bofinho querendo fazer a garota. Marombeiro então, fico bege. Perderam a vergonha, já chegam e a primeira coisa é perguntar o dote. E é podre pra minha carreira, porque a minha nem dura, dura ela fica."

O monólogo ainda está sendo escrito, mas uma primeira versão dele acaba de sair num volume solo intitulado "Neca + 20 Poemetos Travessos" (O Sexo da Palavra, 2021), de onde retirei essa passagem. É a minha maneira de continuar a escrever sobre sexo de uma perspectiva profundamente autobiográfica, mas agora misturando coisas que eu vivi antes da transição com coisas que vivi depois e, junto, trazendo ainda coisas que ouvi falar e outras que deliberadamente inventei. Deixo, para os pósteros, a tarefa de identificar cada um desses elementos no meu texto.

Aliás, vocês acham que eu estava falando de mim, quando falei do prazer em sentir o cheiro da neca desaquendando? É, ali eu dei muita bandeira, era eu mesma.

Ou não.

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