Em que tipo de corpo fazem sentido seios?

Reflexão sobre padrões corporais que tornam possíveis ou proibidas certas intervenções cirúrgicas.

BuzzShe

Na coluna em que discuti procedimentos cirúrgicos envolvendo o clitóris ("Clitóris que parecem pênis: o que justifica uma cirurgia?"), surgiram comentários bastante interessantes e vou partir de um deles para pensar aprofundamentos para a reflexão. Preservei o nome da pessoa, pois não sei o quão confortável ela estaria em tê-lo revelado, e foquei apenas no conteúdo trazido. De modo geral, o comentário girava em torno das motivações e justificativas para práticas cirúrgicas.

O que se propunha ali era dividirmos essas intervenções em duas categorias: as mais marcadamente estéticas e as que visam aliviar algum tipo de sofrimento. A rinoplastia estaria no primeiro caso, por exemplo, enquanto que uma reconstrução de mamas após retirada do câncer, no segundo. A justificativa seria o SUS, já que cirurgias com finalidade somente estética não poderiam ser realizadas por lá: o propósito da cirurgia precisaria ser melhorar a qualidade de vida e o bem-estar des pacientes.

Agora vejam: quem define o que seria esse sofrimento, o grau necessário dele para uma intervenção e qual o procedimento adequado para aliviá-lo ou suprimi-lo? Interessante pensar que, no final das contas, a sustentação dessa diferenciação seria profundamente moral e discutível. Um exemplo? Para a mulher que perdeu um dos seios em função do câncer, essa cirurgia poderá ser oferecida, no entanto, para a mulher que simplesmente não quer ter seios, a cirurgia será considerada mutilação. E não porque o procedimento não é feito, mas sim porque ele não é feito em pessoas consideradas mulheres.

Se essa mulher quiser realizar essa cirurgia, ela precisará se dizer homem, um homem trans no caso, e convencer o Estado disso. Pois, no entender desse Estado (que é, em última instância, quem decreta quais sofrimentos serão considerados válidos, permitindo intervenção médica, e quais não), um peitoral sem seios só faria sentido num corpo de homem. Homens cisgêneros que "sofram" ginecomastia ("crescimento anormal das mamas") podem solicitar pelo SUS esse tipo de cirurgia, inclusive.

Estão percebendo o problema? O corpo considerado ideal segue sendo o cisgênero, um certo corpo cisgênero, aliás, pois está mais do que óbvio que homens cisgêneros podem, sim, ter mamas protuberantes.

Não há nenhuma contradição nisso. No entanto, após essa tecnologia para remoção de mamas protuberantes ter sido desenvolvida, sua aplicação primordial passou a ser no sentido de reaproximar corpos desse tal padrão cisgênero ideal. Enquanto isso, o contrário continua sendo proibido. Por que motivo uma pessoa que se entende como mulher não poderia requisitar a remoção dos seios, mas uma pessoa que se entende como homem sim? Por que apenas o sofrimento do segundo contaria, para fins dessa intervenção cirúrgica?

Termino com uma das passagens mais intrigantes do livro Testo Junkie (2018, p.64), momento em que o filósofo Paul B. Preciado, um pouco antes de oficializar a sua transição de gênero, analisa a bula de um medicamento vendido como repositor de testosterona e os efeitos da medicação em seu corpo:

"Leio a bula do Testogel consciente de estar diante de um manual de microfascismo e, ao mesmo tempo, inquieta pelos efeitos diretos ou secundários da molécula sobre meu corpo. O laboratório pressupõe que o usuário de testosterona é um 'homem' que não produz naturalmente uma quantidade suficiente de andrógenos e, claro, que é heterossexual (as advertências da transferência da testosterona através da pele são dirigidas à sua suposta parceira feminina). Mas, me pergunto, essa noção de homem faz referência a uma definição cromossômica (XY), genital (possuir pênis e testículos bem diferenciados) ou legal (a menção 'homem' consta da sua carteira de identidade)? Se a administração de testosterona sintética é indicada para casos de deficiência de testosterona, quando e de acordo com quais critérios é possível afirmar que um corpo é deficitário? Um exame dos meus sinais clínicos indica falta de testosterona? Por acaso não é verdade que minha barba não se desenvolveu e que meu clitóris não passa de um centímetro e meio? E qual seria o tamanho ideal de um clitóris e seu grau de eretibilidade? E os sinais políticos? Como podemos medi-los? Seja como for, é preciso deixar de afirmar-se como mulher para obter legalmente uma dose de testosterona sintética. Mesmo antes que os efeitos da testosterona se manifestem no meu corpo, a condição para poder administrar-me esta molécula é haver renunciado à minha identidade feminina."

Então, sim, é importante que tenhamos avançado a ponto de conseguir oferecer, no SUS, o acesso a testosterona sintética para quem se diga homem trans. A dúvida, no entanto, é em relação ao motivo de, em 2022, seguirmos acreditando que testosterona é necessariamente coisa de homem.

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