O que significa errarmos o gênero de pessoas trans?

Reflexões sobre como padrões de corpo e identidade interferem na deslegitimação do gênero de pessoas trans.

BuzzShe

Muito tem sido dito, desde o começo desse "BBB", sobre os erros de gênero ("misgendering", em inglês) que a Linn da Quebrada vem sofrendo por parte dos outros participantes. Apesar de o debate nas redes muitas vezes se limitar a dizer que é um absurdo errarem o pronome dela, o tema é mais complexo do que isso e tem conexões com outros tantos pontos seja das dinâmicas de gênero da nossa sociedade, seja da existência transvestigênere em si. O objetivo hoje será começar uma conversa que revele essa complexidade e como é preciso que a gente avance nesses debates.

Reprodução/Instagram

Em primeiro lugar (e talvez isso me gere algumas dores de cabeça com gente da militância), eu gostaria de dizer que não necessariamente por errar o nosso gênero uma pessoa é cuzona, transfóbica. Com certeza, esse erro é revelador da transfobia em que estamos imersas desde que nascemos, transfobia que nos constitui e que molda a nossa percepção de corpos e identidades, mas não é tão simples adquirir consciência disso ou evitar que isso aconteça. Digo isso pensando, por exemplo, no quanto o erro de gênero é comum mesmo dentro da própria comunidade trans.

Se fosse uma questão de pura cuzonice cisgênera, não se veria essa prática entre nós, especialmente considerando a recorrência com que ela se dá. Nós também somos reféns dos padrões de corpo e identidade responsáveis por tais erros, padrões que são martelados na nossa cabeça desde que nascemos. Não é tão simples nos livrarmos deles, ainda que a gente saiba que esses padrões existem e do quanto eles podem nos machucar.

Não é um fenômeno que se manifesta apenas em pessoas cisgêneras, portanto. No entanto, é também importante mencionar que na enormidade dos casos será sim uma pessoa cis a responsável pelo erro. Nunca, por telefone, alguém desconhecide imaginou, de cara, sem que eu precisasse dizer que sou travesti e que o feminino é como eu quero ser tratada, que deveria me tratar por esse gênero. E, bom, se nunca isso aconteceu, é preciso refletir sobre o que está em jogo num caso desses. Será que essas pessoas, boa parte delas trabalhadoras precarizadas, estava de fato querendo me destratar, deslegitimar quem eu sou?

Divulgação

Não consigo acreditar nisso. Tudo, para mim, tem a ver com essas padrões de corpo e identidade que a gente vai aprendendo desde que nasce, até internalizá-los e eles passarem a reger todo tipo de interação nossa com outras pessoas. E aí, mesmo que a gente queira desconstruir esses padrões, mesmo que a gente queira se livrar deles, algum resquício desse adestramento social permanecerá e é nesses momentos que ele se manifesta.

A pessoa que me trata, no telefone, pelo masculino, ela está me dizendo que reconheceu como masculino o padrão da minha voz e, provavelmente, em 99% dos casos ela terá acertado. Ela está errada em proceder dessa forma? Inclusive, dado o machismo brutal no qual vivemos, se essa pessoa perguntasse a um homem ou mulher cis com que gênero preferem ser tratades, é grande o risco de esse homem ou mulher cis se sentir ultrajado pela pergunta e destratar, atacar a pessoa que estava apenas tentando não se basear em pressuposições. É válido cobrarmos, ou mesmo esperarmos, que pessoas corram esse risco, ainda mais profissionais em situação precarizada?

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Mas há também outros exemplos interessantes para refletirmos. Quem é travesti sabe como é comum uma criança que vira e nos pergunta por que a gente tem voz de menino. Essa criança está reproduzindo a mesma lógica que a pessoa com quem converso pelo telefone. Ela identificou, na minha voz, um padrão e está me sinalizando que, mesmo com a pouca idade que tem, já "aprendeu" que esse padrão é conhecido como "de meninos". Não à toa lidar com crianças pode ser uma tarefa difícil para pessoas trans: crianças não têm tanto filtro, dizem o que pensam, e nisso acabam escancarando o quanto a gente, por mais que se esforce, segue fora dos padrões do gênero a partir do qual nos entendemos.

Reprodução/Globo

Essa criança não é uma cuzona transfóbica que quer que travestis sejam mortas, que desapareçam. Ela está simplesmente mostrando o quão profundos são esses padrões e o quão cedo a gente os aprende (coisa que pode acontecer até em famílias bem desconstruídas). E, quando digo "a gente", estou me referindo à sociedade como um todo, inclusive a nós, pessoas trans, que fazemos parte dela. Pois, como dito no começo, é comum que erros do tipo aconteçam mesmo entre nós (o que é mais do que esperado, já que esses padrões de corpo e identidade também foram martelados na nossa cabeça).

Estamos inventando novos padrões de masculino e feminino, estamos, inclusive, propondo a possibilidade de nos furtarmos a esse binário, a possibilidade de inventarmos outras maneiras de identificação pessoal e de reconhecimento coletivo, mas isso não faz com que, do dia para a noite, os padrões hegemônicos sejam superados e invalidados.

Quando uma travesti é tratada no masculino, isso significa que o paradigma cisgênero segue sendo o padrão a partir do quão somos lidas, percebidas. Em boa parte dos casos, é de percepção que se trata e essa percepção tem um quê de automática. Não só podemos como devemos nos exercitar para romper com o adestramento da nossa percepção, para romper com esse paradigma cisgênero, mas com a consciência de que mudanças dessa natureza levam tempo.

Reprodução/Globo

Acho importante discutirmos esses erros, quando eles acontecem, mas me parece perigoso esse clima exaltado de fiscalização que fica escrutinando cada desinência de gênero utilizada na presença de uma pessoa trans. Não é estimulando a boa e velha culpa cristã, nem individualizando um fenômeno que é nitidamente social, coletivo, que vamos desconstruir esses paradigmas.

Bom, mas o texto está ficando já enorme e acabei de me dar conta de que nem metade das coisas que eu queria dizer foram ditas. Seguimos semana que vem nessa mesma série temática, combinado?

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