O primeiro relato autobiográfico trans do Brasil vai completar 40 anos

Você já ouviu falar em "A Queda Para o Alto" (1982), de Anderson Herzer?

Embora às vezes usemos "pessoas trans" como um amplo guarda-chuva para todo tipo de dissidência de gênero, a forma como cada um dos seus subgrupos foi obtendo reconhecimento é bastante diversa é merece tratamento à parte. Hoje falarei sobre um dos segmentos mais invisibilizados, o dos homens trans.

Reprodução | Capa do livro "A queda para o alto" [1982], de Anderson Herzer

Muita gente ainda acredita que essa identidade surgiu só recentemente, mas isso por ignorarem que é de autoria transmasculina o primeiro relato autobiográfico publicado por uma pessoa trans no Brasil: "A Queda Para o Alto" (1982), de Anderson Herzer. O autor em momento algum da obra se reivindica trans, ou mesmo homem, mas ele se trata da primeira à última linha no masculino e se refere a si mesmo sempre pelo nome de Anderson, ou o apelido que o notabilizou na FEBEM, onde esteve preso durante parte da adolescência, "Bigode".

Anderson não conhecia a palavra trans ou, se a conhecia, talvez não se visse representado por ela, nunca saberemos de fato, mas o que não se pode (ou não se deveria poder) ignorar é a uniformidade do tratamento masculino que confere a si mesmo ao longo de toda a narrativa. O surpreendente, no entanto, é que, a despeito dessa uniformidade, os textos que acompanham o seu relato no próprio livro são unânimes em tratá-lo tanto no feminino quanto pelo seu nome de nascimento. A começar pela contracapa:

Reprodução | Matéria da Revista Veja, de 20/10/1982

"Aos vinte anos de idade Sandra Mara Herzer, ou Anderson Herzer, como ela passou a se autodenominar depois de assumir uma identidade masculina, encontrou na morte o fim de seus dramas."

A contradição salta aos olhos. É como se dissessem: ele assumiu uma identidade masculina e passou a se autodenominar Anderson, mas nós vamos continuar nos referindo a ele no feminino e pelo seu nome de nascimento. O próprio livro que se dispôs a publicá-lo não foi capaz de respeitar a maneira como ele se entendia, acreditam? E a questão ganha contornos ainda mais absurdos quando abrimos os prefácios, um do então deputado Eduardo Suplicy e outro de Lia Junqueira, presidente do Movimento em Defesa do Menor.

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O tratamento no feminino e pelo nome de registro é regra, com Suplicy se permitindo inclusive assumir que, com isso, contrariava um desejo expresso do rapaz:

Reprodução | Matéria da Revista Veja, de 20/10/1982

"No dia 09 de agosto, Sandra Mara, como eu sempre a chamara, embora ela preferisse ser Anderson, conversou comigo sobre as suas preocupações" (p. 13). O mais inesperado, porém, é ambos os prefácios apresentarem um episódio extra para a história de Herzer, episódio que Herzer não traz em seu relato, mas que Suplicy e Moreira se deram o direito de acrescentar, por acreditarem que ele "explicava" a transição de gênero do autor (p.10-11):

"Um dos fatores que provavelmente contribuiu para a transformação da personalidade da menina Sandra Mara Herzer em Anderson Bigode Herzer foi o desaparecimento de seu namorado, de apelido 'Bigode'. Bigode teria falecido num acidente de moto. Segundo Lia Junqueira, a menina Sandra Mara ficou tão triste com a morte do único homem que aprendera a gostar, que pensou em se tornar 'Bigode'."

A imaginação cisgênera é uma coisa espantosa. Talvez por isso pessoas trans tenham tanta dificuldade em se destacar nos domínios da ficção, não é mesmo? Afinal, como competir? Suplicy ainda acrescenta que Herzer, "provavelmente porque preferia não ter mais a lembrança de se sentir mulher, optou por não contar esse episódio em seu livro" (p.11).

Ou seja, o jovem não só teve negado o seu direito a determinar seu nome e gênero, como ainda foi implicado numa história que, se de fato existiu, ele preferiu não trazer em seu relato autobiográfico.

A obra foi traduzida para o italiano e o alemão, nova rodada de absurdos vindo à tona, pois, apesar de ambas trazerem como título "Eu, Anderson Bigode" ("Io, Anderson Bigode" e "Ich, Anderson Bigode", respectivamente), a autoria foi dada a "Sandra Mara Herzer".

Reprodução | Capa das traduções da obra de Herzer para o italiano e alemão

Único elogio que se pode fazer à edição brasileira é não terem colocado o prenome de nascimento na capa, optando por indicar a autoria apenas por "Herzer". Já é alguma coisa, não? Como esperar mais da cisgeneridade?

E o que temos ao longo das páginas desse relato? A história de um jovem que, uma vez na FEBEM, descobriu que poderia não apenas se relacionar com mulheres, como também assumir uma identidade marcadamente masculina, como se vê na seguinte passagem (p.69): "Em geral as menores como eu eram chamadas de machão, mas a maioria delas era criticada pelas outras, pois nos passeios da Unidade [...] aceitavam gracejos dos homens, muitas arrumavam namorados etc. Como nunca dei motivo para nenhuma crítica do tipo, era sempre ressaltado como sendo o único 'machão' autêntico."

O livro, aliás, foi escrito não para dar visibilidade a identidades transmasculinas, mas para denunciar as violências sofridas por menores em situação de cárcere. Por acasos do destino, acabou tornando-se também o primeiro relato autobiográfico publicado por pessoa trans no Brasil, o que não impediu que, à época, todas as referências a Herzer se dessem através do seu nome de registro. E, dentre os que se recusaram a reconhecer o seu direito a determinar o próprio nome e gênero, incluem-se ainda militantes dos movimentos feminista e lésbico, assunto do nosso próximo texto.

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