Fragmento inédito do meu monólogo em pajubá

A partir desta semana, o último texto de cada mês será um trecho inédito do monólogo experimental escrito em pajubá.

BuzzShe

Agora que eu sou colunista fixa do BuzzFeed, com texto novinho saindo toda semana, o último de cada mês será um fragmento inédito do monólogo experimental que estou escrevendo em pajubá, a língua da comunidade travesti.

Essa língua se formou a partir do iorubá utilizado por religiões de matriz africana, ao qual por muitas décadas recorremos para nos comunicar sem que quem seja de fora entendesse ("pajubá", por sinal, significa "segredo", em iorubá). No entanto, visto que essa comunidade é marcada pela migração, cada vez mais a língua vem se expandindo, incorporando agora tanto expressões dos mais variados cantos do Brasil, quanto palavras dos idiomas de países onde há uma presença marcante de travestis brasileiras (como Itália, Espanha e França, por exemplo). Um caldeirão linguístico, portanto, no qual se encapsula a própria história do Brasil.

Juliana Mendes Costa

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O monólogo se chama "Neca" e conta a história de uma travesti que viveu miliuma histórias na prostituição.

Pretendo continuar trabalhando nele até ele ter condições de virar um livrão cabeçudo, mescla de Grande Sertão: Veredas (esse romance absurdamente bicha de Guimarães Rosa que, não por acaso, é minha inspiração) e Os 120 Dias de Sodoma (e olha que, com tudo o que já viveu e testemunhou, talvez a obra de Sade seja até fichinha). Junto com o texto, vou mandar também um áudio com a maneira como o leio: acredito que, à essa altura, todo o Brasil já estará mais que fluente em pajubá, mas se ainda houver gentes pouco familiarizadas com o idioma, talvez a minha leitura ajude a se orientarem (sem contar que isso contribui para a acessibilidade da obra).

E, não, não vai ter glossário nem notas de rodapé para explicar o texto. Quero ver como vocês se saem sozinhes diante das minhas diabruras literárias! Bora lá?

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NECA n°1

Só que, guarda bem, se tem algo que jamé, mai, never, nunquinha da silva pra eu fazer é atender casal. Primeiro, porque eu sou mulher e ficar eu e ela écati no esfrega-esfrega, nojo, as duas fazendo aquele sabãozão babado, gosto nem di imaginare. Non me piace e pronto. E isso só era já mais do que o suficiente, mas, segundo, porque cê quer ver problema é ir se meter com casal. Comigo já aconteceu de tutto, eu falo como quem ha própio vissuto la vita, vivida até bem demais. É a mapô que te procura depois, sem o namorado, marido, aquele equê lá dela, sem ele saber, querendo agora continuar só as duas, afe, só as duas o quê? Raciocina! Vontade de falar, mulher, tch'eu te contar um negocinho, aquilo foi o viagra que seu marido me deu e era eu pensano no rolão dele, olhinho meio fechado abistraindo a cena. Segredos do ofício pio antico del mondo, ou você achava mesmo que comprimido só já bastava? Eu sou mulher, virei mulher foi pra ser homem na cama não, inda mais de uma amapô, credo. Nunca vi graça em racha, acha que eu ia aceitar um troço desses assim, sem cabeça nem pé? Quê quê o quê, ô! O aqüé, dependendo, cê fica até balançada, mas pelo menos o boy vendo ali do ladinho, pra eu conseguir visualizar um sexo um poquito, digamos assim, mais normal, isso eu faço questão. É querer demais? O boy, então, ali junto é o mínimo. Posso dar, posso comer, comer os dois até, só não inventar de pedir nada muito estrambólico, pelo menos sem combinar direitinho conmigo antes. As coisas que eu já topei, deise do céu, nem eu mêixma acredito.

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Época que eu morei na Espanha, eita, vê lá, tinha uma amiga minha, mona também, que tomava tê. Tê. Que tê chá o quê! Tê mesmo é de textoxterona, injeçãozona na veia. O babadinho é babado! Maromba, sapatão, hoje o que não falta é quem toma, porém, porém travesti essa foi a primeiríssima que eu tive notícia. Falei, mulher, cê tá doida, quer virar ocó agora, é? E ela, ocó, donde que cê tá vendo ocó acá, ã, ein? E, davero, puta mulherão da porra era ela. Quantos litros de barra mil tinha ali, se pá nem ela mesma sabia, daí não ter testosterona que deixe aquela mulér machuda. E maricona pagando em euro e querendo é a necona da boneca dura, a escolha é sua se faz, se não faz. Cem euros o pegê mais basiquete da gata, tchúqui-tchúqui só e gozou, acabou. E quem goza é só ele, se cê não entendeu, porque ela gozar, rá!, aí tem que pagar a mais. Primeira coisa que a gente aprende é não gozar à toa, ou seja, de graça, senão é um cliente que a gente atende por dia e olhe lá. Quem que dá conta de comer aquela maricona horrouróusa, gozar e, em seguida, ainda ficar didê pra aturar a próxima? Sem contar que sai todo o hormônio, se cê toma hormônio, aí bora aplicar perlutan e ficar ainda, depois, mais perturbada, imagina.

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