É proibido proibir: um convite à desobediência de gênero

De cdzinhas a Indianarae Siqueira, passando por Camila Sosa Villada e Paul B. Preciado.

BuzzShe

Com a coluna de hoje, talvez eu perca um punhado de seguidôris, mas, para mim, só faz sentido ser "influencer" (e eu odeio essa palavra) se for pra provocar reflexão, não pra ficar repetindo o que já está consolidado, com medo de comprar brigas produtivas e até menos necessárias.

Esse negócio de colecionar seguidôris não é comigo, então peço-vos somente o benefício da dúvida, caso vocês já de cara fiquem incomodades com o texto... E aí prometo não fugir da discussão, se rolar discussão séria sobre o assunto, combinado?

Bom, hoje o que eu vou tratar é das existências que se escondem, ou poderiam se esconder, sob a letra T da famosa sopa de letrinhas.

Desde antes da minha transição, oficializada em 2014, eu já não era muito fã da ideia de que a letra T dizia respeito apenas a pessoas que se reconhecessem abertamente como "travestis", "transexuais" ou "trans", mas demorei para conseguir me posicionar sobre o assunto.

Na época, eu já sabia que não ia aguentar por muito tempo aquele cisplay ("quando a pessoa vive como se fosse cis, por mais que já não se entenda dessa maneira"), só que não tinha ainda coragem de contar a ninguém o que se passava dentro de mim. Eu nem sabia aonde eu queria chegar ou mesmo o que eu era, o que eu queria ser: precisava era de espaço e tempo para experimentação, sem julgamentos e roteiros pré-fabricados. E, se eu estava ali imersa em dúvidas, imagina quantas pessoas não poderiam estar vivendo dilemas semelhantes?

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Uma das coisas que isso me levou a questionar é a própria fixidez das chamadas identidades trans, assim como a lista de pré-requisitos para que alguém possa ser reconhecide por meio de delas.

Quantas vezes não ouvi, por exemplo, que cdzinhas não são trans de verdade? Que elas se vestem com roupas femininas só por tesão? Convivi com tantas delas, na intimidade inclusive, e pude presenciar os conflitos que viviam, muitas só não se assumindo oficialmente por conta das consequências que isso acarretaria para suas vidas.

Chegavam a tomar hormônios, a transformar seus corpos, e trago esse ponto não por ser ele uma exigência para pensarmos identidades trans, mas somente para mostrar a complexidade do debate. Quantas ali não eram mais femininas fazendo o seu cisplay cotidiano do que figurinhas carimbadas que se dizem e são reconhecidas como trans 24/7? O que me leva a perguntar: qual a diferença, então, entre uma e outra? A felicidade com que minhas amigas cds se "montavam", com que eu própria me "montava" nessa época, a "outra" pessoa que a gente via surgir bem ali na nossa frente... tudo isso era tão mágico, tão real!

Sem contar o moralismo por trás da acusação "só fazem isso por prazer", como se "por prazer" fosse menos verdadeiro do que "sem prazer", né? Eu própria me vi refém desse medo no começo da transição. Comecei a tomar bloqueador de testosterona um pouco antes de a transição ser oficializada e tomei por mais de um ano, porque eu precisava cortar pela raiz a minha libido e me certificar de que eu não estava fazendo aquilo por tesão. "Eu não sou fetichista", "me vestir assim, existir assim não é uma fantasia sexual", frases que eu repetia a mim mesma para me convencer de que eu era "de verdade", de que aquilo que eu estava fazendo era "de verdade".

Isso tudo me lembra uma passagem de "Las Malas" (2019), romance autobiográfico premiadíssimo da travesti argentina Camila Sosa Villada, recém traduzido aqui no Brasil com o título "O Parque das Irmãs Magníficas" (Tusquets, 2021).

Reproduç| O Parque das Irmãs Magníficas (Tusquets, 2021)

Em determinado momento do texto, a protagonista reflete sobre o que o trabalho sexual significava para ela:

"Não sei de quem posso ter herdado essa falta de ambição, essa comodidade de viver um dia de cada vez, mas não gostava de trabalhar todas as noites. Isso de ser prostituta respondia a uma lógica: se necessitava de dinheiro, meu corpo estava ali, disposto a ganhá-lo; se tivesse para botar o pão na minha mesa, daí ficava em casa tranquilamente dormindo, como um anjinho barbudo."

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Seria ela menos travesti por deixar seus pelos faciais proliferarem nos dias em que não descia pra rua?

Reprodução | Indianare
Reprodução | Indianare

São cada vez mais comuns os relatos de travestis que, diante da obrigatoriedade do uso de máscara na pandemia, começaram a não se preocupar mais com isso, o que não quer dizer que deixaram de ser travestis. Como não lembrar, numa hora dessas, de Indianarae Siqueira ("e se não queira, também", como êlu costuma brincar)? Um dos nomes mais importantes da militância transvestigênere brasileira, êlu desde pelo menos 2018 vem cultivando o cavanhaque como forma de protestar contra os padrões opressores de gênero.

A primeira vez que ouvi falar dêlu foi em 2013, pouco antes da minha transição. À época, seu nome era Indianara e êlu, para questionar a rigidez das identidades T, já não se dizia travesti, mas "pessoa de peito e pau". Poucos anos depois, adotou "Indianare" e oficializou sua reivindicação pela anarquia de gêneros. Atualmente, decidiu fundir os dois nomes e deixar o cavanhaque crescer. Desde os anos 1990 vanguarda da militância transvestigênere (palavra de criação dela, aliás, e que ela quer transformar agora em "transvestiagênere") e o mais impressionante é êlu não se deixar acomodar nunca!

Termino com uma citação do ensaio "Carta de um homem trans ao antigo regime sexual" ("Um apartamento em Urano" [2020]), de Paul B. Preciado, outra figura que adora brincar com a indefinição de fronteiras:

Reprodução | Preciado

"Nossa maior urgência não é defender o que somos (homens ou mulheres), mas rejeitá-lo, é desidentificar-nos da coação política que nos força a desejar a norma e a repeti-la. Nossa práxis produtiva é desobedecer às normas sexuais e de gênero."

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