O Modernismo de 1922 não foi tão hétero quanto pintam

Mário de Andrade fez de suas obras espaço para reflexão sobre sexualidades dissidentes, faceta pouquíssimo conhecida do Modernismo.

Pessoas me dizem ainda hoje o quão corajosa eu fui em publicar um livro onde narro abertamente as minhas experiências como prostituta (E se eu fosse puta, 2016) e é chocante perceber que, na terceira década do sXXI, tenhamos ainda tantos pudores em falar sobre o que nos atrai e em nos permitir vivenciar práticas sexuais que fogem do esperado.

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A questão me faz pensar em Mário de Andrade, cem anos lá atrás tendo que cifrar em seus escritos gostos pessoais para poder falar sobre eles, mas avisando também ("Prefácio interessantíssimo", 1922): "Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu tem essa chave."

Exemplos desse ciframento podem ser vistos, dentre vários outros textos, nos poemas:

Reprodução | Retrato de Mário de Andrade, 1922, de Tarsila do Amaral

"Cabo Machado" ("Cabo Machado é moço bem bonito. / É como si a madrugada andasse na minha frente. / [...] / Mas traz unhas bem tratadas / mãos transparentes frias, / não rejeita o bon-ton do pó-de-arroz. / Se vê que prefere o arbitramento. / E tudo acaba em dança! / Por isso cabo Machado anda maxixe. // Cabo Machado... bandeira nacional!" [Losango Cáqui, 1926]), "Manhã" ("Tinha um sossêgo tão antigo no jardim, / uma fresca tão de mão lavada com limão, / era tão marupiara e descansante / que desejei... Mulher não desejei não, desejei... / Si eu tivesse a meu lado ali passeando / suponhamos Lenine, Carlos Prestes, Gandhi, um dêsses!..." [Remate de Males, 1930]) e "Soneto" ("Tudo o que há de milhor e de mais raro / vive em teu corpo nu de adolescente, / a perna assim jogada e o braço, o claro / olhar preso no meu, perdidamente." [Poesias, 1941]), na sua crítica ao sexismo dos concursos de beleza, defendendo que as mulheres não participem deles seminuas e, sim, bastante enfeitadas, e encontrando ainda um jeito de insinuar que "entre os animais e os humanos de vida primária esses concursos são feitos entre os seres masculinos" ("Táxi — Miss Brasil", 1929), e sobretudo no fenomenal "Frederico Paciência", conto de forte carga homoerótica, todo ele narrado em primeira pessoa e o leitor só bem avançada a leitura descobrindo que o "eu" que narra se chama não "Mário", mas "Juca". Não à toa, esse conto só foi publicado dois anos após a morte do autor (Contos novos, 1947).

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Tais ousadias não passaram batido e isso é perceptível no fato de o autor de Macunaíma ser ironizado, p.ex., em vários artigos da segunda fase da Revista de Antropofagia, onde "foi chamado de 'Miss São Paulo', 'Miss Macunaíma', 'Dona Maria', 'a mais genuína representante da antropofagia feminina no Brasil' e 'comadre também, e das boas'" (Jorge Vergara, no artigo "Homofobia e efeminação na literatura brasileira: o caso Mário de Andrade" [2015]).

Reprodução | Mario de Andrade, 1922, de Anita Malfatti

Tamandaré, pseudônimo de Oswaldo Costa, é um dos mais incisivos críticos de Mário na revista: "Quem na mesma hora toca órgão na igreja de Santa Efigênia e se confessa no CABO MACHADO. [...]. Queremos amor. Aquele amor gostosíssimo que você botou nas estrofes do CABO MACHADO. Mas sem o incenso do coro de Santa Efigênia" (Diário de São Paulo, 24/04/1929, p.10).

Oswald não deixa por menos. Com o pseudônimo de Cabo Machado, publica na Revista de Antropofagia um artigo em que se refere a Mário como "o nosso Miss São Paulo traduzido em masculino" e em que chama de "cartinhas de amor" a correspondência trocada entre este e os jovens escritores de Cataguases, do grupo Verde (Diário de São Paulo, 14/04/1929, p.6). Eis precisamente a época em que se dá a ruptura definitiva entre Oswald e Mário, ruptura que, para parte da nossa crítica literária, em especial a interessada em fechar os olhos para a componente homoerótica da vida e produções deste, segue em boa medida inexplicada. No Dicionário de bolso (1990), obra inconclusa de Oswald só publicada muito postumamente, o verbete "Mário de Andrade" de um dos manuscritos traria ainda: "Muito parecido pelas costas com Oscar Wilde".

Às vésperas do centenário da Semana de 1922, o que vamos cada vez mais nos dando conta é que o nosso primeiro modernismo tem tanto um viés LGBTQIA+ doido pra ser explorado, quanto uma faceta profundamente LGBTfóbica que precisa também ser melhor conhecida. Nada disso costuma dar as caras nos materiais didáticos e mesmo nas historiografias literárias, mas coisas têm mudado na maneira como pensamos a literatura e algo me diz que, dentro em breve, essas vão ser questões centrais para refletirmos sobre o nosso cânone.

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