O discurso médico tratando LGBTs como "semeadores da Aids"

Quando se evidencia que cis hétero contraem HIV, a medicina define LGBTs como culpados pela transmissão.

Nas duas últimas colunas, falei sobre as primeiras iniciativas tomadas durante o período mais turbulento da epidemia do HIV/Aids no Brasil e as resistências que elas sofreram para serem implementadas. A camisinha, por exemplo, que hoje já está naturalizada e encontramos à disposição em todo tipo de estabelecimento, na época as campanhas que preconizavam seu uso como forma de enfrentamento à epidemia receberam bastante resistência de setores conservadores, como a Igreja e mesmo certos setores da medicina, que viam nessas campanhas um incentivo a práticas sexuais que contrárias à moralidade hegemônica. Ou seja, em nome dessa suposta moralidade, valia inclusive atrapalhar campanhas que visassem a combater o avanço exponencial do HIV no Brasil.

Mas, de tudo o que li a respeito nessas pesquisas, o que mais me chocou foram artigos de um médico figurinha carimbada nos debates sobre HIV/Aids dos anos 1980, Vicente Amato Neto. Infectologista de renome, inúmeros textos seus saíram nos dois maiores jornais paulistas discutindo prevenção e alertando o público a respeito dos desafios que a epidemia representava. Sua abordagem, no entanto, era muitíssimo tendenciosa, veiculando com frequência pensamentos assustadoramente discriminatórios. E o fato de ser uma autoridade reconhecida, um porta-voz da comunidade médica, só torna ainda mais absurdas as suas declarações.

A tentativa de responsabilizar pessoas LGBTQIA+ e usuários de drogas injetáveis pela disseminação da Aids se verifica em textos de autoria não só sua, mas o diferencial de Amato é a desumanização extrema a que ele sujeita tais grupos. Talvez o exemplo mais concreto disso esteja num artigo curto publicado por ele no Estadão, cujo título é "Vamos dialogar com os mosquitos" (24/03/1987). O texto começa com uma apresentação do que, segundo ele, seriam "circunstâncias [que] tornam a Aids muito preocupante":

"Esse caráter de malignidade, a disseminação por pessoas que encerram particularidades intrigantes e dificuldades concernentes à prevenção, não executável de maneira matematicamente viável, porque envolve a participação de seres humanos cujos comportamentos estão plenos de conotações problemáticas.

Homossexuais masculinos, bissexuais e viciados que injetam drogas na veia são os grandes veiculadores da Aids. Eles, lamentavelmente, também propiciam a contaminação de heterossexuais e de mulheres, podendo depois, estas, condicionarem a infecção de seus filhos".

Difícil imaginar algo mais escabroso do que o que observo nessas linhas. Ele começa apontando para o comportamento sexual "problemático" dos "grandes veiculadores da Aids" e defendendo que existe "malignidade" por trás disso, ou seja, que tais pessoas transmitem HIV intencionalmente. Nisso residiria um dos maiores empecilhos para conter a transmissão. Porém ele não para aí, aproveitando a oportunidade para escancarar o que efetivamente levou o poder público a começar a tratar o HIV/Aids com a seriedade que ele demandava: o fato de esses "grandes veiculadores" estarem "lamentavelmente" transmitindo HIV para heterossexuais.

Não fosse isso e talvez a sociedade até comemorasse esse castigo divino que, até então, parecia fulminar apenas pessoas LGBTQIA+ e usuários de drogas injetáveis. Percebam, inclusive, que um dos grandes responsáveis, ainda hoje, pelo número crescente de casos de HIV entre pessoas cis heterossexuais foi justamente a invenção do tal "grupo de risco", que fez com os grupos que se pensavam "de não risco" se sentissem imunes à infecção.

Mas Amato não para por aí. Na sequência do texto, ele afirma que esse "razoável número de semeadores da Aids" tem "individualmente ou inclusive usando entidades específicas apregoa[do] discurso calcado na exigência de respeito aos seus espaços e à liberdade de agir como querem, sem discriminação de qualquer ordem". Na opinião do médico, tais indivíduos estariam não só agindo de forma inconsequente, como também atrapalhando na "elaboração de projetos referentes à síndrome, opinando, censurando atitudes e coibindo providências exigidas pela coletividade em geral".

Ao que ele acrescentaria: "Indo mais longe, somos obrigados a presenciar a ironia, o descaso e a irresponsabilidade de travestis e de homossexuais libertinos, insistentemente contestadores da relevância do problema e demonstrativos de frieza quando cobrados a propósito dos maus hábitos que adotam".

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E, bom, você deve estar se perguntando o que diabos isso tem a ver com mosquitos? Só no último parágrafo o título se explica, momento em que Amato traça um paralelo entre o combate ao hiv/aids, por um lado, e à febre amarela e dengue, ambas difundidas pelo Aedes aegypti, por outro. Segundo ele, se enfrentássemos estas da maneira como fazemos com o primeiro, deveríamos buscar "entendimento com tais vetores, convocando o chefe deles e os representantes da categoria, a fim de surgir deliberação acerca de amistoso combate às duas infecções [febre amarela e dengue] citadas".

Em outras palavras, o autor estaria defendendo que, em casos de saúde pública, grupos reputados como vetores de disseminação de doenças não deveriam ter seus direitos respeitados. Algo que ele abordaria de forma mais explícita no artigo "Ponto crítico em AIDS" (Estadão, 17/04/1988), onde afirmaria que:

"No campo da saúde pública, o consenso ditado pela sociedade prevalece sobre os pretensos direitos individuais de homossexuais masculinos, bissexuais e viciados, configurados como os grandes veiculadores da infecção pelo HIV. Então, haverá outro tipo de trabalho profilático, sedimentado na contestação do que são a liberdade para prática de inadmissíveis relacionamentos sexuais e a propriedade do corpo, para execução de qualquer coisa. Sexualidade responsável não é repressão e luta antidroga não é ilícita. Talvez nisso tudo resida a antevisão de momento crucial, capaz de mudar o estilo do embate preventivo."

O que está sendo proposto aqui é a criminalização de pessoas LGBTQIA+ e de usuáries de drogas, com a previsão inclusive de privação de liberdade e de direitos. Pessoas heterossexuais estariam "lamentavelmente" contraindo hiv (quer dizer, contraindo não, sendo contaminadas e de propósito, como se a gente colocasse uma arma na cabeça delas e as obrigasse a transar sem camisinha), mas, a julgar pela argumentação do famigerado doutor, elas seriam aqui puras e inócuas vítimas, nenhuma política específica sendo necessária para conter a propagação entre elas. Impor rédeas curtas à "malignidade" de "travestis e homossexuais libertinos" já seria o bastante para dar um fim à epidemia, ao que parece.

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