As travestis invadem a FLIP

Sobre a presença recorde de travestis na programação do mais prestigiado evento literário do país.

E eu fiz minha estreia na programação oficial da Festa Literária Internacional de Paraty, a famosa FLIP, maior evento literário do país. Já tinha participado da programação paralela em 2019, numa mesa do SESC, mas programação oficial mêixmo foi só agora. São anos que estou de butuca acompanhando esse evento, esperando a minha oportunidade, e ela veio no ano mais significativo possível, porque essa edição marcou um recorde de participações travestis: eu e Camila Sosa Villada, a argentina que tem encantado o mundo com o seu romance "O Parque das Irmãs Magníficas", juntas. Sem contar que tudo isso ocorreu logo após a eleição de Lula, não é mesmo? E quem sabe o Hexa logo mais.

Dez anos após a participação de Laerte na FLIP, as travestis retornam à tenda principalzona e não passaram batido. O público se deliciou, bateu palma até não poder mais e mesmo a mídia soltou não poucas notas sobre a nossa presença. A falta de intimidade com as nossas pautas acabou gerando algumas situações curiosas, inclusive, como por exemplo quando Camila diz que quer "travestir la literatura" e um jornal estampa a seguinte manchete: "Camila Sosa Villada fala na Flip sobre 'disfarçar a literatura' e o machismo do mercado". Travestir significando disfarçar, eis como muita gente, em 2022, ainda segue nos entendendo. 

Comigo a situação foi ainda mais engraçada, com um jornalista da Folha afirmando que o que me interessa, em termos de literatura, é a oralidade violenta de frases como "acredita que ele [o cliente] pediu para ninar a neca dele?" O problema é que eu não disse "ninar" e, sim, uma palavra beeem menos limpinha, comportadinha, "nenar". Falei até que eu não iria traduzir a expressão, deixei como lição de casa para o povo que estivesse de fato determinado a conhecer mais da cultura travesti, em especial da língua que foi se criando entre nós a partir do iorubá das religiões de terreiro, o bajubá.

Depois dessa sugestão do jornalista, fiquei até pensando em uma adaptação infanto-juvenil para adultes do meu monólogo "Neca", com paródias de composições tradicionais brasileiras como a "cantiga de nenar" ("Nena, neném, / ou o cheque vai gritar"). O que acham? Ajudem aí com sugestões para esse novo clássico impublicável da nova edição do KitGay. Pensei em dar o nome de "Nequinha" pra essa obra que enterraria as minhas pretensões de ser levada a sério no país.

Mas as nossas participações não se resumiram a isso, obviamente. Uma das discussões importantes que surgiram foi sobre censura, tanto aquela baseada em questões morais, como a que motivou a mudança do título do meu livrinho absurdo de "E se eu fosse puta" para "E se eu fosse puRa" (as livrarias não queriam vender um livro com a palavra "puta" na capa, acreditam?), quanto aquela baseada em questões econômicas e que impõe obstáculos, às vezes intransponíveis, para grupos inteiros se aventurarem pelo universo da literatura (Camila abordou bastante esse ponto, dizendo que, como é travesti, só é publicada porque vende bem... isso é comprometimento efetivo das editoras com a superação da transfobia ou puro suco de oportunismo?).

Laura Zanotti / Divulgação

Falamos também sobre as novas feições que a literatura de nossos países vai ganhando à medida que travestis começam a brincar de escritoras, com o léxico e a perspectiva das ruas bagunçando a carinha comportada que as línguas ibéricas, a muito custo, tentam conservar na América Latina e, pior, criando inúmeros inconvenientes quando se tentam traduzir essas obras. Mesmo entre nossos países. Lembro aqui de, na tradução brasileira da obra de Camila, "salir a yirar" ter sido traduzido por "fazer o trottoir" (expressão francesa com que nossas avós cisgêneras se referiam à prostituição até os anos 60, provavelmente... poderiam ter pensado em "ir pra batalha", "fazer rua" quem sabe, se tivessem consultado travestis — "rodar bolsinha" é gíria zoeira de cis héteros que nunca exerceram a prostituição). 

Já na primeira proposta de tradução do meu livro para o espanhol, "achei que ele ia me tchakatchar gostoso" tornou-se "me invitó para un lindo chá-chá-chá", expressão que não tem nenhum sentido erótico. Depois encontramos uma onomatopeia argentina para o barulho do sexo ("dungadunga"), mas esse é só um exemplo das dificuldades tradutórias que acompanhei de pertinho na tradução do meu livro... pensem agora em "fio terra", "frango assado", "banheirão", ou na própria traduzibilidade do bajubá, e imaginem o desespero do estrangeiro que se meter com essa obra. E isso porque estamos falando de países vizinhos e culturas bastante próximas.

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Nas próximas semanas vou tentar fazer um exercício de tradução de excertos da obra da Camila não para o português, mas para o bajubá, e ver como isso ficaria. É parte de um desejo antigo meu de trazer grandes produções brasileiras e internacionais para essa linguagem tão poderosa e capaz que não exista melhor ponto de partida para uma tradução dessas do que uma obra tão profundamente comprometida com a travestilidade. Quem quiser saber mais, só ficar ligade nas minhas próximas colunas.

Aproveito o texto de hoje para fazer um convite especialíssimo para você que estiver de bobeira em São Paulo esse final de semana: dia 04/12, domingo, às 15h, na livraria Megafauna (metrô República), vai rolar o lançamento do novo livro da Camila aqui no Brasil, "Sou uma tonta por te querer" (editora Planeta/Tusquets), livro de contos maravilhosos que ela agora nos brinda. A autora estará lá e euzinha também, com perguntas cabeludas para ela. Preparades?

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