A primeira morte por LGBTfobia na história do Brasil

A perseguição à dissidência sexual e de gênero resultou num das mortes mais atrozes que da nossa história.

Tava um pouco desaparecida por conta dos mil rolês em que me meti, sem contar o caos em que estamos vivendo, mas tou de volta e agora com uma sequência absurda de colunas para a gente reinventar a cara desse nosso Brasil. Andei metendo o bedelho em documentos antigos dos primeiros séculos da colonização e o que eu acabei encontrando, nossa, vocês não fazem ideia de como é chocante. Sabe aquela carinha puritana e moralista com que estamos acostumades a ver retratado o Brasil Colônia? Pois bem, nada mais longe da realidade e eu posso provar. Então se preparem para uma enxurrada de textos sobre a dissidência sexual e de gênero, com muita ênfase para as figuras transvestigêneres pioneiras da nossa História.

Bom, vai fazer 10 anos que o historiador Luiz Mott publicou um livreto intitulado "São Tibira do Maranhão (1613-2013) - Índio gay mártir" contando a história da primeira morte por "homofobia" no país. O caso se passou pouco após a fundação de São Luís/MA, durante a ocupação francesa conhecida como "França Equinocial" (a França Antártica seria a ocupação francesa no Rio de Janeiro, ocorrida algumas décadas antes). O relato está presente no capítulo V da segunda parte da obra "Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614" (1874), do padre Ivo D'Evreux (em francês, Yves D'Evreux).

O venerável padre nos conta que "um pobre índio, bruto, mais cavalo que homem, fugiu para o mato por ouvir dizer que os franceses o procuravam e aos seus semelhantes para matá-los e purificar a terra de suas sujidades por meio da santidade do Evangelho, da candura, da pureza e da clareza da Religião Católica Apostólica Romana" (p.230). Ele acabou preso, confessando-se culpado, aceitando o batismo cristão e sendo sentenciado a uma das mortes mais atrozes de que se tem notícia na nossa história colonial: "amarraram-no pela cintura à boca da peça [canhão], e o Cardo vermelho [Karuatapyran, chefe indígena] lançou fogo à escorva, em presença de todos os principais, dos selvagens e dos franceses, e imediatamente a bala dividiu o corpo em duas porções, caindo uma ao pé da muralha e outra no mar, onde nunca mais foi encontrada" (p.233).

Importante dizer que Karuatapyran solicitou que ele próprio executasse a condenação, demonstrando "grande contentamento e alegria perante os franceses por haver recebido tal honra" (segundo D'Evreux, era uma honra ser responsável por executar os prisioneiros, sobretudo para quem queria "ser um dia Principal"). Antes de efetuar o disparo do canhão, contudo, ele fez um discurso para o condenado e suas palavras são importantíssimas para o que defenderei com esse texto:

"Morres por teus crimes, aprovamos tua morte, e eu mesmo quero pôr fogo na peça para que saibam e vejam os franceses que detestamos tuas maldades; mas repara na bondade de Deus e dos Padres para contigo, expelindo Jeropary [nome de um demônio, em tupi] para longe de ti por meio do batismo, de maneira que apenas tua alma saia do corpo, vai direita para o Céu ver Tupan e viver com os Caraíbas [os homens brancos, europeus], que o cercam: quando Tupan mandar alguém tomar teu corpo, se quiseres ter no Céu os cabelos compridos e o corpo de mulher antes do que o de um homem, pede a Tupan que te dê o corpo de mulher e ressuscitará mulher, e lá no Céu ficarás ao lado das mulheres e não dos homens" (p.232).

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As palavras do chefe são cruciais para entendermos a maneira como os preconceitos cristãos foram rapidamente sendo impostos aos povos indígenas, a LGBTfobia sendo o mais destacado deles. No entanto, apesar de Karuatapyran acatar prontamente que a existência LGBTQIA+ era um pecado/crime execrável, o mais execrável de todos (só equiparável ao crime de Lesa Majestade na nossa legislação colonial, não à toa a escolha de uma punição tão extrema), percebam também que ele considera que Tupã poderia interceder pela figura condenada e corrigir o erro do seu nascimento, transformando-o em mulher no Céu.

E esse é exatamente o ponto em que eu queria chegar: em momento algum se diz qual o pecado/crime cometido, ainda que se possa inferir que seja sodomia pela violência da punição. O discurso, porém, faz menção concreta à possibilidade da figura condenada "ressuscitar mulher", caso ela assim o deseje, o que no mínimo deveria fazer com que a considerássemos no limiar entre a homossexualidade e a transgeneridade.

Outra passagem da obra de D'Evreux, que segundo Mott também faria referência a essa figura, só reforça a nossa hipótese. Ela se encontra no capítulo XXV da primeira parte, onde se lê: "Há em Juniparan, na Ilha, um hermafrodita, no exterior mais mulher do que homem, porque tem face e voz de mulher, cabelos finos, flexíveis e compridos e, contudo, casou-se e teve filhos, mas tem um gênio tão forte que vive só, porque receiam os selvagens da aldeia trocar palavras com ele" (p.90).

Vejam bem: se Mott estiver certo em identificar essa figura como a mesma que teria sido morta no disparo do canhão, como não imaginá-la uma das primeiras travestis que existiu nesse território, após o início da colonização europeia?

Mott é um pesquisador incansável e merecedor de todos os louros por seus estudos sobre a dissidência sexual e de gênero no Brasil Colônia e em Portugal. Isso aqui está longe, aliás, de ser uma crítica a ele, afinal talvez demorássemos mais alguns séculos para nos dar conta desse acontecimento, não fosse o trabalho pioneiro dele em resgatar tais histórias. O que se propõe nesta coluna (e em alguns dos próximos textos que pretendo escrever) é uma nova perspectiva para os documentos que ele encontrou, documentos que nos ajudam a imaginar uma cara muito mais bicha, muito mais sapata, muito mais trava para os primórdios da colonização do nosso país.

Bora ver onde isso vai dar?

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