Existe maneira ideal de enfrentar padrões opressores?

Paralelos com outras formas de opressão para tentarmos entender os dilemas que a transfobia nos coloca.

Sim, queremos que um dia barba, voz grossa, ombros largos, pênis não sejam considerados como expressamente masculinos e que seios, voz fina, formas arredondadas, vagina não sejam entendidos como exemplos a priori de feminilidade, mas não é essa a realidade em que vivemos. E, caso você queira forjar a sua feminilidade a partir (ou sem se privar) dos primeiros atributos ou a sua masculinidade a partir (ou sem se privar) dos segundos, prepare-se para encarar um sem-fim de deslegitimações.

Cada pessoa sabe onde o calo aperta e, visto que nem todo mundo nasceu para mártir, não faz sentido esperarmos, ou mesmo cobrarmos, sacrifícios de quem só quer poder tocar a própria vida sem tantas atribulações. Paralelos com outras experiências de discriminação podem ser úteis para entendermos melhor esse ponto. A gordofobia dos nossos tempos, por exemplo, fará com que a pessoa gorda esteja sempre entre dois caminhos: ou buscar desesperada e permanentemente o emagrecimento, muitas vezes colocando a própria saúde em risco, ou lutar contra a imposição da magreza como ideal de corpo.

Na primeira opção, ela estará (sobretudo se tiver recorrido a meios drásticos, perigosos, o que é bastante frequente) violentando seu corpo para fazê-lo aproximar-se do padrão corporal socialmente legitimado. Caso tenha sucesso, conseguiria blindar-se pelo menos em parte dessas discriminações, mas o mais comum é que a pessoa jamais atinja êxito pleno, isto refletindo-se de forma direta em sua autoestima e no quão à vontade sua vida transcorrerá. Costuma-se alegar que a preocupação com a obesidade é uma preocupação com a saúde do indivíduo, mas pouco se diz sobre o aspecto adoecedor da gordofobia, sobre o absurdo de equacionar corpo gordo e doença e sobre o quanto a própria cultura de emagrecimento pode ser nociva à vida de todes.

Na segunda, ela precisaria, antes de mais nada, transformar a maneira como pensa seja o próprio corpo, seja o corpo gordo em geral. Não é uma transformação simples, no entanto, e, assim como no outro caso, dificilmente poderemos falar em êxito pleno. Como construir uma relação saudável com o próprio corpo, quando a pessoa será permanentemente lembrada de que ele não faz sentido? Olhares invasivos, dedos apontados, piadas, humilhações, agressões físicas até, sem contar as preterições no campo amoroso, os possíveis distúrbios alimentares, a distorção da autoimagem... e eis aqui apenas alguns indícios de como a luta para romper com o ideal de magreza poderá ser árdua.

Luta cheia de idas e vindas, pois, por mais que alguém busque libertar-se de padrões corporais reconhecidamente opressores, tais padrões moldam nossas consciências desde que nascemos e a qualquer momento podemos voltar a ver-nos pela ótica hegemônica.

Como condenar a pessoa que, enfrentando diariamente toda essa gama de discriminações, resolve recorrer a métodos drásticos de emagrecimento? Sequer podemos falar que, ao lançar mão de um tal recurso, ela deixa obrigatoriamente de se afirmar contra os padrões opressores. Não é incomum, aliás, que, ao invés de escolher ou um ou outro dos caminhos que apontei acima, a pessoa acabe tentando forjar um caminho intermédio em que ela, sem deixar de recorrer pontualmente ao emagrecimento, continue articulando-se pela superação da gordofobia.

Dilemas similares se colocam para a pessoa negra numa sociedade racista, para a mulher numa cultura patriarcal, para a pessoa com deficiência num mundo sem acessibilidade, para a estrangeira numa país xenófobo, vulnerabilidades que podem ainda ser amplificadas quando a pessoa é atravessada por mais de um desses marcadores ao mesmo tempo. Digressão feita, espero que, a esta altura, já se percebam as conexões entre o debate sobre o bloqueio da puberdade e os paralelos que acabei de apresentar.

Quanto antes se começa o bloqueio hormonal, menos se afirmam, naquele corpo, os traços que nossa cultura aprendeu a ler como do gênero oposto ao reivindicado. Com isso, mais fácil será construir um corpo que não divirja tanto dos padrões estabelecidos, o que resultaria em menores doses de transfobia em seu cotidiano. "Menores doses" porque, por mais que nos aproximemos do padrão, sempre haverá algo para apontarem como insuficiente.

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