Mulheres de neca

Mulheres poderem ter neca é coisa hoje mais que sabida, mas bem diferente era a realidade décadas atrás, quando a ideia estava ainda sendo inventada.

Meados de 2016 foi o momento do meu primeiro encontro presencial com Linn da Quebrada.

Eu já a conhecia pelo seu afrontoso clipe de estreia, "Enviadescer", sensação no YouTube desde o lançamento, mas nesse dia, pouco antes do começo da mesa que dividiríamos, ela cantou no meu ouvido "Mulher" e eu não conseguia acreditar que aquela figura realmente existisse. A composição falava sobre uma "diva da sarjeta [...] sempre em desconstrução" e, dentre os inúmeros versos memoráveis, trazia esse refrão surreal que, desde então, nunca saiu da minha cabeça:

Ela tem cara de mulher,

ela tem corpo de mulher,

ela tem jeito,

tem bunda,

tem peito 

e o pau de mulher!

Ah, sim, a mulher da canção é uma travesti (o que não quer dizer que toda travesti seja mulher, nem que toda mulher seja travesti... a coisa é mais complicada do que isso e, se vocês têm acompanhado a minha coluna, já devem saber o quão impossível seria explicá-la num mísero parênteses, certo?) e o "surreal" que usei para descrevê-la não quer dizer que ela seja "uma transgressão da verdade sensível, da razão" (uma das definições da palavra no dicionário Houaiss),  mas, sim, que eu fiquei passada com o quão absurdas, impossíveis ou — para usar uma palavra mais a cara dessa travesti da música e da própria compositora — babadeiras elas são.

Reprodução -

Documentário Bixa Travesty (2018), sobre Linn da Quebrada

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Frase que poderia servir de ilustração à canção "Mulher" é a de outra travesti escândalo, Indya Moore: "se uma mulher tem neca, a neca dela é uma neca biologicamente feminina" (Indya é uma das protagonistas de "Pose", conhecem a série? Se não conhecem, favor correr atrás!). Coisa hoje em dia mais que sabida, essa de que certas mulheres têm neca, mas bem diferente era a realidade algumas boas décadas atrás, quando essas bonitas e eu própria sequer tínhamos nascido e uma ideia como essa estava ainda sendo inventada.

Reprodução - Twitter

Aliás, uma das referências mais antigas que encontrei dessa compreensão é a seguinte:

Reprodução - Notícias Populares, 1984

Roberta Close - O Brasil inteiro quer trepar com ela. A manchete do jornal sensacionalista afirma, categórica: "A MULHER MAIS BONITA DO BRASIL É HOMEM". Correm boatos que, por causa dela, quase houve um crime passional. Nos salões de cabeleireiros a dúvida é desfeita imediatamente por seus titulares: "Sim, é homem. Ou melhor, é mulher com neca". A verdade é que Roberta Close é muito mais do que tudo isso. É fenômeno sexual do inverno brasileiro. E para matar a curiosidade de vocês, amigos leitores de Big Man Internacional, mostramos uma sequência de fotos feitas durante o desvairado carnaval carioca deste ano, onde Roberta Close mostrou sua odiada/desejada bunda.

Seria de bom-tom eu pedir desculpas por fazer uso de uma revista pornográfica na minha respeitável coluna, mas, visto que sou putafeminista e tenho inclusive um livro em que falo sobre (algumas das) minhas experiências como trabalhadora sexual (E se eu fosse puta [hoo editora, 2016], renomeado para E se eu fosse puRa a partir da segunda edição, de 2018, em função das livrarias se recusarem a vender livro com a palavra puta na capa), acho que isso já seria mais do que esperado. Necessário até, uma vez que é ali que vamos encontrar material significativo sobre a história transvestigênere no Brasil.

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Nem sempre é fácil determinar a data de publicações pornográficas, porque elas ficam séculos nas bancas e, aí, sem possuir data, ela não fica datada e pode sempre ser vendida como novidade, no entanto temos aqui algumas pistas. A primeira é a referência à manchete de 31 de maio de 1984 do jornal sensacionalista Notícias Populares ("Mulher mais bonita do Brasil é homem"), a segunda é a menção ao inverno, pistas que nos permitem concluir que esse número da Big Man Internacional (N°10-B) saiu na metade de 1984.

Reprodução - Big Man Internacional (N°10-B), 1984.

A transfobia fica escancarada em inúmeras páginas desse exemplar, os dois momentos mais marcantes sendo a chamada da capa ("A prova definitiva! Roberta Close é homem!") e a parte em que apresentam a suposta evidência: a foto de um borrão debaixo da saia de Roberta, onde acreditam estar vendo o seu saco escrotal. Diante de comportamentos como esse, não entendo como a transgeneridade tem sido patologizada por tantas décadas e a cisgeneridade nunca.

Porém, tapando o nariz pra transfobia, é possível perceber o que essa revista traz de essencial: o registro da palavra "neca", por um lado, e, por outro, do fato de que travestis já brincavam de se imaginar "mulheres de neca". Coisa mais linda recuperar essas histórias!

E, bom, se você chegou até aqui e ainda não faz ideia do que significa "neca", não vá atrás de uma resposta nos dicionários de língua portuguesa... ou você acabará acreditando que ela é sinônimo de "nada". O que, pensando bem, não deixa de ser verdade.

PS: "Neca" é, aliás, o nome do meu monólogo em pajubá e ele faz parte do livro Neca + 20 Poemetos Travessos (Editora O Sexo da Palavra, 2021), em pré-venda até o começo de julho no site: https://www.osexodapalavra.com/neca

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