Por trás da máscara da fada sensata

Reflexões sobre idealizações que fazemos de militantes, obrigando-as a vestir uma máscara permanentemente.

Uma das principais questões que, oito anos atrás, me levou à transição de gênero foi o desejo de poder externalizar a maneira como eu me entendia em meu íntimo. Àquela altura, não me bastava a experiência pontual, temporária, de me travestir entre quatro paredes, na presença de umas poucas pessoas que me aceitassem como eu era: não, era preciso mais, era preciso poder viver como Amara, fazer desse o meu nome, reinventar-me travesti, justamente o que eu venho buscando desde então.

Cintia Antunes/Divulgação

Quem dera fosse tão simples existir da forma como nos entendemos, não é mesmo? Até certo ponto, posso dizer que tive sucesso no que eu buscava, mas situações imprevistas acabaram surgindo e me levando uma vez mais a ter que me esconder sob máscaras. Um trecho do conhecido poema "Tabacaria", de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, ilustra bem a sensação:

Fiz de mim o que não soube,

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.

Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo [...].

O dominó ("disfarce carnavalesco formado de túnica com capuz") que continuamos vestindo apesar de ser o errado e de não sabermos usá-lo, a máscara que se cola ao nosso rosto e que, ao conseguirmos tirá-la, já envelhecemos, as vezes em que nos tomam por quem não somos e, por não ousarmos desmentir, nos perdemos, por fim o cãozinho inofensivo que vamos nos tornando, tolerado pelos espaços em que nos fazemos presentes. Me vejo em tantos momentos desse poema e foi justamente ele que me veio à mente quando assisti às entrevistas que a Linn da Quebrada deu após a sua eliminação do "BBB".

Reprodução/Instagram

Por quê? Bom, um dos estranhamentos iniciais que tive, já nos primeiros dias do programa, teve relação com o fato de ela se apresentar insistentemente como Lina Pereira e não Linn da Quebrada, o que fez com que eu não soubesse como me referir a ela nas postagens que eu fazia. Eu a conheci como a artista e militante Linn da Quebrada, MC Linn da Quebrada na verdade, e, por mais que soubesse que seu nome na intimidade (e, recentemente, também nos documentos) fosse Lina, acreditava que era como Linn que ela estava se dando a conhecer.

Eu acreditava não só nisso, mas também que não haveria maior glória do que ostentar o nome de Linn da Quebrada no horário nobre da TV e isso, para mim, tornava ainda mais incompreensível o gesto dela de se apresentar como Lina. Até que fui me dando conta de que não era uma questão só dela, mas de inúmeras outras figuras que, de alguma maneira, atingiram grande notoriedade. O Leandro, mais conhecido como Emicida, é um dos casos que me ocorre e, nesse próprio "BBB", houve outro exemplo disso, com Naiara Azevedo dizendo que, ali, queria poder ser a Naiara de Fátima.

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Pensando nisso tudo, me dei conta do quanto eu mesma já tentei dividir minha existência em vários nomes, várias personas. No começo da transição, eu tentava assinar meus artigos acadêmicos como "Amara Rodovalho" (o meu primeiro sobrenome), deixando "Amara Moira" apenas para as produções literárias e/ou militantes. Em pouco tempo isso se tornou insustentável, dado o alcance que este nome foi assumindo, englobando todo o restante da minha vida.

Reprodução/Globo

Eu amo ser Amara Moira, amo o que esse nome representa. No entanto, tenho plena consciência de que eu não caibo inteira dentro dele. Posso até tentar me espremer, me contorcer para me encaixar ali dentro, só que em nenhum momento eu me esqueço das partes que ficam de fora, das partes que não tem como fazer caber nesse nome, das partes que eu sequer quero que caibam.

Fiz a minha transição para poder externalizar o que eu vivia no íntimo, mas o que aconteceu foi que eu precisei voltar a me dividir entre, pelo menos, duas existências: a figura pública, milituda, que não pode errar (pois os erros não serão só dela, vão afetar todo o grupo ao qual ela pertence), e a íntima, que não deveria ser da conta de ninguém, mas que frequentemente se torna tema de debate público. Acredito que tem a ver com isso o apego de Lina a este nome, a insistência dela em dar-se a conhecer dessa forma. Lembram do discurso do Tadeu em sua eliminação?

"Por sua causa, Lina, o Brasil inteiro sabe. Não tem mais desculpa para errar o pronome: é ela. Por sua causa, Lina, não tem mais desculpa para errar o artigo. É a travesti. E é travesti, e não alguma palavra pejorativa. Quem é capaz de medir o quanto esses erros mexeram com as pessoas aqui fora? O quanto definiram trajetórias aqui dentro? Não foi só o Júnior que você matou, Lina. Você matou também um bocado de preconceitos. E pra conseguir isso, Linn não teve que bradar. Ela apenas aceitou se expor inteira, por inteiro e inteiramente."

É maravilhoso saber que conseguimos afetar tantas vidas, mudar a maneira como tantas pessoas pensam, mas existir permanentemente nesse lugar é um peso que não se suporta fácil. O Brasil inteiro de olho em você, aprendendo com você, mas também te julgando quando você não se comporta da forma como te idealizaram. Creio que foi essa a principal razão da eliminação da Lina: não ter sido a fada sensata sem defeitos que todes esperavam, a insuperável Linn da Quebrada que ela também é, mas preferiu não ser dentro do "BBB".

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