A revolta da cisgeneridade com o primeiro filme nacional sobre um homem trans

O filme "Vera" (1986), de Sérgio Toledo, teve repercussões intrigantes.

Numa coluna minha de dois meses atrás, ao falar sobre o livro "Devassos no Paraíso", de João Silvério Trevisan, e a importantíssima citação ali feita da carta de 1551 do jesuíta Pero Correia ("Há cá muitas mulheres que assim nas armas como em todas as outras coisas seguem ofício de homens e têm mulheres com quem são casadas"), eu mencionei também que a frase seguinte da carta era ainda mais surpreendente, apesar de não ter sido citada no "Devassos": "A maior injúria que lhes podem fazer é chamá-las mulheres. Em tal parte, lho poderá dizer alguma pessoa que correrá risco de lhe tirarem as frechadas".

Trevisan teve acesso à citação por via indireta, através da obra de Florestan Fernandes "A Organização Social dos Tupinambás" (1989), e isso ajuda a entender o porquê de as "frechadas" não virem citadas, visto que Florestan suprimiu essa parte.

No entanto, a frase intermédia foi sim citada por Florestan ("a maior injúria que lhe podem fazer é chamá-las mulheres", p.137), o que me leva a refletir sobre os motivos dessa supressão.

Longe de mim querer criticá-lo por isso, aliás. A questão é mais pensar a maneira como sensibilidades transvestigêneres foram se consolidando, a maneira como nosso jeito de ver o mundo foi tomando forma, ganhando relevância, até chegar o momento em que conseguimos chamar atenção para novos sentidos escondidos sob as palavras do jesuíta quinhentista.

A questão é mais pensar a maneira como sensibilidades transvestigêneres foram se consolidando, a maneira como nosso jeito de ver o mundo foi tomando forma, ganhando relevância, até chegar o momento em que conseguimos chamar atenção para novos sentidos escondidos sob as palavras do jesuíta quinhentista.

Os indivíduos vistos por Correia se sentiam insultados quando chamados de "mulher" e, no entanto, é só dessa forma que o jesuíta sabe vê-los. Ele registra a irritação desses guerreiros, irritação que poderia levá-los a lançar flechadas para cima de quem os tratasse dessa forma, mas mantém, mesmo assim, o tratamento no feminino. É capaz que ele próprio, no interesse de conservar-se vivo, se esforçasse por tratá-los de outra maneira (qual seria essa outra maneira, homens?, uma outra designação?, não sabemos, só sabemos que "mulher" não era aceitável), sorte que Anderson Herzer não pôde desfrutar, como vimos em duas das minhas últimas colunas: "O primeiro relato autobiográfico trans vai completar 40 anos" e "Homens trans e o direito de se dizer homem".

Publicidade

Longe de mim querer criticá-lo por isso, aliás. A questão é mais pensar a maneira como sensibilidades transvestigêneres foram se consolidando, a maneira como nosso jeito de ver o mundo foi tomando forma, ganhando relevância, até chegar o momento em que conseguimos chamar atenção para novos sentidos escondidos sob as palavras do jesuíta quinhentista.

Os indivíduos vistos por Correia se sentiam insultados quando chamados de "mulher" e, no entanto, é só dessa forma que o jesuíta sabe vê-los. Ele registra a irritação desses guerreiros, irritação que poderia levá-los a lançar flechadas para cima de quem os tratasse dessa forma, mas mantém, mesmo assim, o tratamento no feminino.

É capaz que ele próprio, no interesse de conservar-se vivo, se esforçasse por tratá-los de outra maneira (qual seria essa outra maneira? homens? Uma outra designação?), não sabemos. Só sabemos que "mulher" não era aceitável), sorte que Anderson Herzer não pôde desfrutar, como vimos em duas das minhas últimas colunas: "O primeiro relato autobiográfico trans vai completar 40 anos" e "Homens trans e o direito de se dizer homem".

E, nisso, voltamos ao Trevisan, autor de um ensaio importantíssimo para a história dos percalços pelos quais as narrativas trans passaram até começarem a ganhar status de verdade: "Vera: retrato de uma identidade impossível".

Reprodução | Cartaz do filme Vera (1986) destaca Ana Beatriz Nogueira

Publicado originalmente no n° 28 do jornal "Mulherio" (março/abril de 1987, São Paulo), mas incluído depois no livro "Pedaço de mim" (Record, 2002), o texto fala sobre o filme "Vera" (1986), de Sérgio Toledo, que traz a história de um jovem que, passando parte da adolescência na Febem dita feminina, passa a reivindicar uma identidade masculina, rejeitando o prenome que lhe deram no nascimento e exigindo ser tratado por Bauer, seu sobrenome.

Os paralelos com a autobiografia de Anderson são gritantes, mas Toledo, que chega a ser perguntado a respeito numa entrevista concedida a Amir Labaki ("Folha de S. Paulo", 05 de abril de 1987), esquiva-se dizendo sequer ter gostado do livro e que, em suas pesquisas, acabou descobrindo que "a história de Sandra Mara se repete aos milhares". O diretor ainda continua: "A primeira coisa que você encontra quando entra num prédio da Febem, por exemplo — embora no filme o orfanato não seja uma reconstituição da Febem — são as paredes com inscrições ou textos exatamente como o livro da Sandra Mara". Cai quem quer, né?

Bom, salta aos olhos a incapacidade de Toledo em tratar Anderson pelo nome com que este se reconhecia, como se o diretor estivesse dizendo: "Ele pode espernear, pode botar a roupa que for, mas homem sou eu e ele não é nem pode ser igual a mim". Tratar Anderson no masculino, ou pelo nome que este reivindicava, implicaria Toledo ter que reinventar os sentidos que a palavra "homem" comporta, ter que encontrar outras formas de explicar como é que ele próprio se tornou homem, já que indivíduos nascidos com vagina começavam a demandar essa mesma condição.

Publicidade

Observem ainda que um mesmo movimento é feito no filme, onde vemos o jovem a todo momento repetir "Não me chamem de Vera, meu nome é Bauer" e, no entanto, qual o título da obra? Isso mesmo, "Vera", palavra que significa "verdade", aliás.

Reprodução

O gesto é muitíssimo mais violento do que o promovido pelos editores de "A Queda Para o Alto", a autobiografia de Anderson, pois aqui a autoria da obra, pelo menos na capa, é dada a "Herzer", forma de nomeação neutra e com a qual o próprio autor se reconhecia, ainda que em todo o material paratextual que acompanha a obra essa nomeação seja deslegitimada.

O diretor se interessou por narrativas como as de Herzer, quis levá-las para as telas, mas era preciso colocá-las entre aspas desde o início, destituí-las de qualquer possibilidade de reconhecimento. Filme premiadíssimo, um marco do cinema nacional, eis também um marco na história dos obstáculos que precisamos enfrentar para nossas identidades passarem a ser encaradas não como piadas, paródias, e sim como a verdade do que somos.

Reprodução

Espero que hoje, 35 anos após o lançamento de "Vera", Toledo já seja capaz de reconhecer que a "verdade" que ele levou para as telas é não a do engano de Bauer, mas a dele próprio: a verdade de seres que, ante a emergência de um grupo que reinventava as fronteiras entre os gêneros, se mostravam perplexos e amedrontados, daí a violência com que reagiam. Filmes como esse falam mais sobre os Sérgios Toledos da vida do que sobre figuras como Bauer e Herzer.

E, bom, falei, falei, falei e o ensaio do Trevisan acabou ficando pra trás... deixemo-lo então para uma próxima coluna, onde buscarei esmiuçar um pouco mais minha leitura sobre "Vera".

Publicidade

Veja mais textos da colunista Amara Moira.

Veja também