Primeiras narrativas trans na história do Brasil

Momentos da história do Brasil em que você correria risco de vida se insistisse em errar o gênero de uma pessoa que, hoje, poderíamos chamar de trans.

Às vezes fica a impressão de que a luta LGBTQIA+, e em especial a transvestigênere, começou só muito recentemente aqui no Brasil e por influência estrangeira, mas isso revela apenas o desconhecimento que temos da nossa própria história.

Duas obras incontornáveis para transformarmos essa realidade, obras que não vou me cansar nunca de recomendar, são: "Além do Carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX" (2019), de James N. Green, e "Devassos no Paraíso: A homossexualidade no Brasil, da Colônia à atualidade" (2018), de João Silvério Trevisan.

Ambas trazem no título "homossexualidade", mas é uma compreensão expandida da palavra que elas têm em vista, "homossexual" como um termo guarda-chuva para toda a comunidade LGBTQIA+ (caso de Trevisan) ou para uma específica parte dela (caso de Green, que especificou "homossexualidade masculina" no subtítulo, mas na prática fala também de travestis heterossexuais e não discute a perspectiva de homens trans gueis). Tal uso vem sendo abandonado nos últimos tempos, dados os apagamentos que ele promove (ficam de fora bissexuais, assexuais, pessoas intersexo, pessoas trans e travestis, sem contar as próprias lésbicas, já que "homossexual" é palavra que, no Brasil, remete mais a homem guei do que a mulher sapatão), mas para muita gente, sobretudo militantes de outras gerações, ele ainda segue válido. 

Fossem essas obras desimportantes e eu cairia em cima de tal escolha, defensável até uns 10, 15 anos atrás, mas de profundo mau gosto hoje em dia.

No entanto, são obras essenciais, incontornáveis para forjarmos uma nova compreensão da história LGBTQIA+ no país, motivo que me leva a fazer vista grossa à questão.

Tudo isso para falar de um específico ponto do "Devassos no Paraíso", ponto que me fez pensar na possibilidade de as dissidências sexuais e de gênero existentes hoje terem relação com práticas e comportamentos que por aqui imperavam antes da chegada dos invasores europeus. Me refiro ao capítulo 5, "Pareço estar em Sodoma, e pior ainda...", todo ele sobre costumes indígenas relatados por viajantes que viveram os primeiros séculos disso que hoje se conhece como Brasil (a frase utilizada no título foi retirada de uma carta de 1636 do calvinista francês Vicente Soler, morador do Recife durante a colonização holandesa).

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Nas nove páginas que compõem esse capítulo, Trevisan entrelaça um sem-número de referências para compor um mosaico completamente inesperado das sexualidades e gêneros que, não fossem o genocídio, a aculturação e o racismo a que os povos indígenas têm sido submetidos desde 1500,  poderiam ser regra por aqui.

Um exemplo marcante? O seguinte trecho, retirado do capítulo 10 da "História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil" (1576), de Pero de Magalhães de Gandavo:

"Algumas índias há também entre eles que determinam de ser castas, as quaes não conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão, ainda que por isso as matem. Estas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios como se não fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os machos e vão à guerra com seus arcos e frechas e à caça perseverando sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que é casada, e assim se comunicam e conversa como marido e mulher".

Reprodução - História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil (1576), de Pero de Magalhães de Gandavo


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A passagem é luminosa e, hoje, quem tem um mínimo de intimidade com a comunidade trans dificilmente não verá paralelo entre as figuras aí descritas e pessoas transmasculinas.

Uma diferença básica, contudo, verifica-se no fato de a identidade do homem trans ser considerada dissidência na cultura em que vivemos, ao passo que, na descrita por Gandavo, tais figuras estão perfeitamente de acordo com as normas. A ponto de podermos nos perguntar se, para indivíduos dessa comunidade, as figuras descritas seriam "mulheres indígenas em papeis masculinos" (como Trevisan as coloca) ou, simplesmente, homens (sequer é possível saber como as próprias figuras se viam e eram vistas, se como "homens diferentes", "homens de um novo tipo", ou se só como "homens", mesmo, sem a necessidade de qualificador nenhum).

Indivíduos, então, que não consentem em nenhum tipo de conjunção carnal com homens (o que indica que a castidade mencionada talvez não signifique ausência total de sexo, mas sim de sexo com penetração peniana) e que, para horror da cisnormatividade judaico-cristã, têm a sua identidade masculina reconhecida pelo próprio coletivo, podendo ainda cada um deles possuir companheira com quem diz ser casado: com a imposição dos modelos de vida europeus, terão essas figuras e práticas desaparecido por completo ou estavam apenas escondidas, aquendadas, à espera de uma possibilidade de retorno?


Outra passagem, no entanto, é ainda mais emblemática para entendermos a força dessas novas narrativas de gênero e sexualidade.

Numa carta de 1551 do padre Pero Correia, menciona-se a existência de "muitas mulheres que assim nas armas como em todas as outras cousas seguem ofício de homens e têm outras mulheres com quem são casadas". A descrição é quase igual à de Gandavo, mas a frase seguinte, não trazida pelo Devassos (que optou por citar apenas a anterior), trará uma novidade importantíssima para o debate: "A maior injúria que lhes podem fazer é chamá-las mulheres. Em tal parte, lho poderá dizer alguma pessoa que correrá risco de lhe tirarem as frechadas" (Cartas avulsas: 1550-1568, 1931, p. 97).

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Reprodução - Cartas avulsas: 1550-1568, 1931


Aqui fica patente a forma como tais indivíduos se entendiam, especialmente se considerarmos que estavam dispostos a mandar flechas pra cima de quem não os tratasse como homens. O que me faz pensar no jagunço Diadorim, um dos personagens principais de "Grande Sertão: Veredas" (1956), de Guimarães Rosa. De acordo com a narrativa, que se passa no sertão mineiro em fins do século XIX, numa única ocasião duvidou-se da masculinidade dele e, nesse momento, o seu punhal quase atravessou a garganta de um dos que não "achavam nele jeito de macheza" (Cia das Letras, 2019, p.119). Dúvidas a respeito só voltarão a existir após sua morte, momento em que descobrem, ao despir seu corpo para o enterro, que ele possuía vagina: "Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita" (Cia das Letras, 2019, p.428).

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Reprodução - Globo, 1985

Riobaldo (interpretado por Tony Ramos) e Diadorim (Bruna Lombardi), na minissérie "Grande Sertão Veredas", da Globo.

A sua existência como homem, ao longo de 99% do romance, prova o quanto uma identidade masculina pode prescindir de pênis.

Ele viveu como homem e foi assim reconhecido pelo seu bando, pelos seus pares, e se, após sua morte, tanto companheiros quanto leitores da obra passaram a tratá-lo no feminino, isso se deve ao fato de ele não poder mais se valer do punhal como método de convencimento... queria ver terem coragem de discordar do gênero de Diadorim na frente dele ou, mesmo, daqueles nossos incríveis antepassados citados por Gandavo e Correia.

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