Quanto podemos mudar nossos genitais?

A proposta é começar um debate sobre a autonomia que temos ou devíamos ter para modificar nossos corpos, sobretudo os genitais.

Semana passada, o trecho inédito do monólogo deu o que falar, com a Simona trazendo à tona um tema que, atualmente, a maior parte das pessoas acreditava que era coisa de séculos atrás: eunucos.

Se você pensava assim, saiba que a realidade está bem longe disso. Tanto é que a World Professional Association for Transgender Health - WPATH ("Associação Internacional de Profissionais pela Saúde Transgênera"), na versão 8 do seus Standards of Care ("Padrões de Cuidado"), ainda em fase de discussão, trará um capítulo exclusivo com orientações sobre essa nova, ainda que antiga, identidade.

Mas, enquanto esses padrões se limitam a considerar os casos de pessoas que, reconhecendo-se como eunucos, removeram ou inutilizaram os testículos, a Simona acabou abordando uma gama maior de intervenções genitais. Acompanhem:

"É lixo que quer cortar o pau fora, cortar, sim, cortar, shak! Se existe? Ô, se existe. E eu já num vi um assim? Vi até ele sem o bilau gozar! Ele apertando as bolinhas (isso ele não cortou, cortou foi só o bilau), enquanto eu xingava ele, humilhava, dizia as coisas mais absurdas (eles amam!), juro que foi só isso e o leite jorrava ali do buraquinho. Se arrependeu nada não, ele adorava se exibir assim. Eunuco tá voltando a ser moda, mulher, e nenhum deles é trans, nada a ver, só não querem mais balangando ali embaixo o piupiu. Tem os que querem tirar só o saco (dizem que vem uma paz depois, não tem mais aquele tesão, as coisas malucas que eles têm vontade — tipo esse bloqueador que cê toma, só que, aí, ai, aí, é um pouquinho mais permanente) ou, então, querem se livrar é logo dos dois, ficar sem nadinha, neca de pitibiriba."

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Se você é uma dominatrix vivida como a Simona, aposto que já recebeu propostas para fazer você mesma uma operação caseira dessas. Por quantias vultuosas, inclusive (busquem a palavra "castratrix" no Google e vejam quão presente ela se faz no submundo do pornô).

"Não aguenta mais a castidade? Tenho uma solução pra você."

E, acredite, isso é só a ponta do iceberg do que rola mundo afora, com inúmeros grupos e fóruns ensinando o passo a passo para você conquistar, seja sozinhe ou acompanhade, a sua tão desejada transformação. O que nos leva à seguinte pergunta: é loucura querer remover, inutilizar, deformar o próprio genital ou simplesmente um direito que compete a cada ume, independente dos motivos que lhe levam a isso? Até que ponto deve o Estado se meter naquilo que fazemos com os nossos próprios corpos?

Essas perguntas me remetem diretamente ao livro "Testo Junkie - Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica" (n-1 edições, 2018), onde, dentre outras mil coisas, o filósofo Paul B. Preciado discute os motivos para que "a rinoplastia (operação de nariz) seja considerada uma cirurgia estética enquanto a vaginoplastia (construção cirúrgica de uma vagina) e a faloplastia (construção cirúrgica de um pênis) sejam consideradas cirurgias de mudança de sexo" (p.126).

Segundo o autor, isso se deve ao fato de o nariz ser considerado como "propriedade privada e objeto de mercado", ao passo que "os genitais continuam encerrados em um regime pré-moderno, soberano e quase teocrático de poder que os considera propriedades do Estado e dependentes de uma lei transcendental e imutável". Ou seja, temos bastante autonomia para intervirmos nos nossos narizes (isto é, dependendo do tanto de dinheiro que você esteja disposto a pagar), mas, no que diz respeito aos nossos genitais, deles possuímos apenas a tutela e o usufruto vitalícios, não mais que isso.


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Qual a razão para permitirmos que uma pessoa possa remover seus testículos e, introduzindo a pele do pênis para dentro, remodelar seu genital de maneira a dar-lhe o formato de uma vagina, mas negarmos à outra pessoa o direito de simplesmente remover esses testículos e/ou pênis, por querer se ver livre dele(s)?

Nas próximas colunas, vou mergulhar na história das primeiras cirurgias de redesignação sexual (a famosa "mudança de sexo") feitas no Brasil e, com isso, complexificar esse debate sobre tanto os processos pelos quais determinadas intervenções corporais vão ganhando sentido até serem plenamente aceitas pela Medicina e o Estado, quanto as intervenções que seguem sendo feitas sem qualquer expectativa de autorização ou compreensão dos poderes reguladores da sociedade.

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