O que mudou no enfrentamento ao HIV com a presença da camisinha?

Não faz tanto tempo que a camisinha passou a se fazer presente em nossas vidas e o HIV teve relação total com isso.

A redescoberta da camisinha promoveu uma transformação na maneira como se discutia prevenção à Aids nos anos 1980. Se inicialmente o debate estava centrado na noção de "grupos de risco", o que implicava isolamento e abstinência como estratégias de controle (ineficazes evidentemente, ainda mais porque levavam quem não faz parte desses tais grupos a se sentir completamente protegido, sentimento que mesmo hoje ainda é forte), a entrada da camisinha permitiu que o debate tomasse outros rumos, dando agora centralidade para o conceito de "comportamento de risco" (Pinheiro et. al., 2013). Sim, era possível transar com segurança mesmo nos tempos mais funestos da epidemia do HIV/Aids, como aponta o cartaz do GAPA que expus na minha última coluna.

Sempre penso no desespero que deve ter sido essa epidemia chegar alguns anos depois do surgimento do movimento LGBQTIA+ no Brasil. A reta final da Ditadura foi justamente o momento em que o movimento eclodiu, mas antes da ditacuja acabar de vez, já tínhamos que lidar com esse outro B.O. cabuloso. Daí hoje, olhando para as conquistas que a comunidade trans tem atingido, fico me perguntando se tem algum balde de água fria do tipo nos aguardando logo ali. Será?

Bom, de qualquer forma, vejam que falei em "redescoberta" da camisinha, não em "descoberta". O conceito existia há bastante tempo, mas os modelos à base de látex começaram a ser produzidos apenas um século atrás, quando a sua produção passou a ser automatizada (até então eram feitos a mão, caríssimos mas, pelo menos, reutilizáveis). As vendas de preservativo daí em diante foram aumentando significativamente, mas a partir da invenção e comercialização da pílula anticoncepcional na década de 1960, sua utilização entrou em declínio, só voltando ao centro dos holofotes em função do HIV.

No entanto, se mesmo atualmente ainda tem quem não saiba direito como colocá-lo (ou mesmo o que fazer com ele, quando o tem nas mãos), imagina lá atrás, nos primórdios da sua adoção em massa. Com o agravante de que os modelos disponíveis eram bem menos confiáveis, com menos testes de qualidade, materiais não tão resistentes e muitas vezes ainda vindo sem lubrificação, o que aumentava bastante o risco de se romperem.

Resultado? Não era possível falar em método 100% seguro, como se observa na seguinte declaração do infectologista Vicente Amato Neto, na sua coluna "Política de combate à Aids" (Estadão, 11/02/1989):

"Uso de camisinha é recurso valioso na diminuição da propagação da doença, considerado em nível coletivo, esperando-se queda na disseminação da epidemia quando o emprego for generalizado, na vigência dos comportamentos que impliquem em risco. Sob o ponto de vista individual, a camisinha não é, infelizmente, meio preventivo inteiramente seguro: risco de má colocação, ruptura e esquecimento de utilizá-lo fazem com que esse instrumento profilático fique menos confiável."

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A utilização imprópria precisa ser levada em consideração ao analisarmos a segurança do dispositivo e, se trinta e tantos anos depois seguimos com dificuldades em promover o uso adequado do preservativo, o que pensar daquela época. Por isso fico tão absurdamente irritada com o comportamento da Igreja, que denunciei na última coluna. Uma coisa é a Igreja não fazer a recomendação de determinadas práticas sexuais e de dispositivos de prevenção, outra bem diferente é ela querer meter o bedelho na construção de campanhas de saúde pública. Saúde pública, entenderam?

E aí, a pretexto de não disseminar um método contraceptivo de gravidez e não estimular comportamento tido por "promíscuo", criam empecilhos para campanhas que propunham formas efetivas de enfrentamento da epidemia. Fico imaginando os dilemas, antes do surgimento da PrEP, vividos por um casal católico sorodiscordante (ou seja, em que apenas uma das pessoas tem HIV): da perspectiva dessa Igreja mais tacanha, ou eles exerceriam a abstinência sexual ou, então, chutariam o balde e transariam sem preservativo, pois recorrer a práticas contraceptivas é pecado.

De qualquer forma, a citação ao médico acima não foi gratuita. Se nesse texto de 1989 ele parece até moderado, essa não é a tônica do que ele publicou em vários jornais importantes nos anos anteriores. Mas isso fica para as próximas colunas.


Referência

PINHEIRO, T.F. et al. "Uso de Camisinha no Brasil: Um olhar sobre a produção acadêmica acerva da prevenção de HIV/Aids (2007-2011). Revista Temas em Psicologia - 2013, vol.21, n.3, 815-836.

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