"Faz sem camisinha comigo, confia em mim" - o ano é 2021 e travestis ainda escutam frases desse tipo

Sejam elas trabalhadoras sexuais ou não.

BuzzShe

Quem me conhece sabe que eu adoro um meme e que eu gasto parte considerável do meu dia trocando memes com amigues nos whatsapps da vida. Daí que ao receber um print da seguinte conversa, achei que se tratava de mais um desses memes aleatórios que circulam pelas redes e que a gente nunca vai conseguir saber se é real mesmo ou fabricado. A conversa printada:

"— Falei que geralmente só saio com garotas fixas por questão de segurança mesmo, pra ter sentimento envolvido, confiança, etc. A confiança é pra poder transar sem proteção. O que acontece é que sem ela eu sou até bem potente, mas com eu já cheguei até a brochar, o que não é legal. Questão de sensibilidade e psicológico. Você acha que daria pra seguir nessa linha?"

Ri litros do absurdo do pedido, aí perguntei aonde minha amiga tinha encontrado esse meme, ao que ela respondeu que aquilo não era um meme, pelo menos não ainda, mas sim uma conversa que estava rolando naquele momento com um possível cliente (sim, ela é trabalhadora sexual). Precisei que ela me mostrasse no próprio celular, pra acreditar que alguém teria de fato sido capaz de dizer aquilo e, mesmo depois de ver, eu não conseguia acreditar na cara de pau do sujeito.

Toda uma conversa mole pra tentar convencê-la a transar sem camisinha e isso na primeira interação que tiveram. Pensa pra quantas ele já não veio com a mesma história, capaz que tenha o parágrafo até salvo e só precise dar control+c / control+v. "GERALMENTE só saio com garotaS fixaS" (pode me dizer quantas? só pra eu ter uma ideia do perigo que elas estão correndo...), aí me mete um "por questões de SEGURANÇA" (ah é? pra quem?), dá ainda o truque do "SENTIMENTO envolvido", pra só então vir com o objetivo desde o princípio, a cartada da "CONFIANÇA", que no idioma dele significa "poder transar SEM CAMISINHA" e não correr o risco de "BROCHAR".

O triste é saber que, seja por carência afetiva ou mesmo por dinheiro, muitas travestis acabam aceitando esse tipo de proposta na prostituição.

Reprodução |  "Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil" (2008), de Don Kulick

Na etnografia "Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil" (2008), de Don Kulick, resultado de um estudo feito em Salvador nos anos 1996 e 1997, fala-se que, mesmo estando todas conscientes "de que os preservativos são essenciais na prevenção do contágio por HIV" (p.45), acontece de travestis não usarem proteção dependendo dos valores envolvidos (clientes que, se aproveitando das dificuldades financeiras enfrentadas pela trabalhadora sexual, tentam fazer com que ela abra mão do seu protocolo de segurança) ou se o parceiro for um "vício" ("isto é, um jovem atraente, com quem elas fazem sexo voluntariamente, sem cobrar", p.46).

"No entanto", ressalta Kulick, "o mais importante vetor de transmissão do HIV entre travestis não são seus clientes, nem seus 'vícios', mas seus namorados" (p.46). E isso porque, "para o bem 'e' para o mal, travestis passaram a associar camisinha com trabalho", abdicando do seu uso nos relacionamentos afetivos... e, como o afeto possível para muitas de nós é precário e raro, acabamos alvo fácil para predadores irresponsáveis. Obras como "Princesa: Depoimentos de um travesti a um líder das Brigadas Vermelhas" (1995), autobiografia da paraibana Fernanda Farias de Albuquerque, e "Engenharia Erótica: Travestis no Rio de Janeiro" (1997), de Hugo Denizart, também trazem relatos apontando na mesma direção.

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Falo sobre isso em muitas passagens do meu monólogo, mas também em poemas que acompanham o meu "Neca + 20 Poemetos Travessos" (editora O Sexo da Palavra, 2021).

Reprodução | "Neca + 20 Poemetos Travessos" (editora O Sexo da Palavra, 2021).

Num deles, publicado pela primeira vez na antologia "Tente entender o que tento dizer: poesia + hiv/aids" (2018), organização de Ramon Nunes Mello, reuni uma sequência de frases que toda travesti, puta ou não, já cansou de escutar:

pela décima vez

confia em mim, sou casado,

doador de sangue e, por Deus,

primeira trava com que eu

saio é você, olha o estado

em que ele fica, babado:

te dou mais dez, nem assim?

você tem cara que fez

teste, o meu deu nem um mês;

aliança e tudo, eu sou, sim,

casado, ó, confia em mim.

Em outro, escrito em 2005, primeiro poema que escrevi sobre travestis, nove anos antes da minha transição, trato a realidade por outro prisma. À época, era comum ver notícias nos jornais dizendo que "metade das travestis que exercem a prostituição em São Paulo são portadoras do hiv" e isso me dava uma raiva brutal, porque a responsabilidade era jogada sempre nos ombros delas, como se contraíssem o hiv sozinhas, só por serem travestis. E eu já conhecia o suficiente o meio para saber que as condições terríveis de vida em que elas eram obrigadas a viver tinha uma parcela significativa de culpa.

Daí que, nesse novo poema, imaginei uma travesti que, após anos a fio ouvindo frases como a do poema anterior, decide acatar o pedido do cliente:

regozijazigo

pai de [tamanho] família,

pau pequeno, apalpa a neca

da travesti que secreta-

mente inveja a alegria

com que ele se presta à cilha:

qual cona, o cu se abre assaz,

tesa, a trava se compraz

e enfia ainda mais, mas come-a

sem fome e a chama de fêmea

e goza — o vírus verás.

Tinha em mente uma espécie de revanche, com a única arma que ma parecia acessível para uma travesti naquele momento.

Reprodução | "Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids" (2009), de Larissa Pelúcio.

É um poema duro, escondi-o por bastante tempo pelo misto de sentimentos que ele me provoca, mas não deixa de trazer bons elementos para reflexão. Não à toa, estudioses de questões transvestigêneres cunharam o termo "sidadanização" para pensar como se dava o acesso à cidadania para boa parte das travestis até pouco tempo atrás (ver, em especial, o capítulo "Prevenção e SIDAdanização", na obra "Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids" [2009], de Larissa Pelúcio).

E vocês, o que acham desse poema?

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