Transexuais, eunucos, monstros: as primeiras cirurgias de redesignação sexual no Brasil

E como alguns debates ainda são necessários quando o assunto é este tipo de procedimento.

Algumas pessoas ficaram incomodadas com a comparação que fiz, na minha última coluna, entre o direito de alguém fazer uma cirurgia de redesignação sexual (CRS, a famosa "mudança de sexo"), que nada mais é do que remodelar, com bisturi, a região genital até que ela se pareça com uma vagina, e o direito de alguém simplesmente querer se ver livre do próprio pênis.

E, vejam bem, a questão que proponho não é se o SUS deveria oferecer ambas as cirurgias, mas sim por que a primeira é possível de ser realizada nos sistemas de saúde (sejam eles públicos ou privados), enquanto a segunda é proibida, por ser considerada uma mutilação?

É como se a medicina e, com ela, a própria sociedade da qual ela faz parte, já conseguisse aceitar a ideia de que pessoas, caso se identifiquem com o gênero dito oposto ao designado no nascimento, teriam direito a requisitar a remodelagem do próprio genital, mas essa mesma medicina ainda se horrorizasse diante de pessoas que ou, sem se identificarem com o gênero dito oposto, desejassem essa remodelagem ou só quisessem mesmo reduzir seus órgãos sexuais a um simples canal urinário.

A lógica que passou a permitir a primeira possibilidade, mas ainda proíbe as duas últimas, tem que ver com a inteligibilidade dos corpos e gêneros. Hoje, já somos capazes de conceber corpos de mulheres com pênis e de homens com vagina, mas, para isso, ambos precisam ter nascido com tais genitais.

Ou seja, para a medicina, uma pessoa que, tendo nascido com pênis e se entendendo como homem, sentisse vontade de ter uma vagina, teria que recorrer a uma operação clandestina para realizar seu desejo, assim como a pessoa que, tendo nascido com vagina e se entendendo como mulher, desejasse possuir um pênis.

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Oras, se já chegamos à conclusão de que o genital não define o nosso gênero, por que é necessário se dizer homem para poder reivindicar uma faloplastia (construção cirúrgica de um pênis) e mulher para uma vaginoplastia (construção cirúrgica de uma vagina)? E se, mesmo já existindo homens com vagina e mulheres com pênis, essas duas cirurgias seguem proibidas, o que dirá de quem simplesmente não deseje possuir genital nenhum.

O debate me faz lembrar do processo movido pelo Ministério Público de SP, em fins de 1975, contra Roberto Farina, primeiro médico a realizar cirurgias de redesignação sexual no Brasil.

Farina, àquela altura, já havia realizado quase dez cirurgias do gênero, mas foi apenas em novembro daquele ano, após uma matéria do Estadão elogiando o pioneirismo do médico brasileiro ("Mudança de sexo, pioneirismo na AL", 15/11/1975), que o Ministério Público de SP se inteirou do assunto e decidiu mover um processo contra o cirurgião.

Detalhe: nenhuma das pacientes havia reclamado dos resultados.

O que houve, isso sim, foi o pasmo ante a descoberta não só da existência de tais cirurgias, como também de que algumas das pacientes de Farina, após se operarem, conseguiram alterar o sexo dos seus documentos e até se casar (com um homem, subentenda-se). Tudo relatado na notícia do Estadão.

A acusação girava em torno do fato de Farina não ter realizado efetivamente uma cirurgia de "mudança de sexo", o que seria impossível, na opinião do procurador Luiz de Mello Kujawski, pois "o que caracteriza a mulher, na verdade, são os órgãos destinados a conceber e dar à luz". Sendo assim, o que havia sido feito na paciente foi "a ablação, segundo consta, dos seus órgãos sexuais, com a posterior abertura, no períneo, de uma fenda à imitação de vulva postiça". O procurador iria ainda mais longe:

"O que consegue a referida cirurgia plástica, com a colaboração hormonal, é a criação, digamos assim, de eunucos estilizados, para melhor aprazimento de suas lastimáveis perversões sexuais e, também, dos devassos que neles se satisfazem. Tais indivíduos, portanto, não são transformados em mulheres, e sim em verdadeiros monstros, através de uma anômala conformação artificial."

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Transexuais, eunucos, monstros e, por trás de tudo isso, o temor (que ficará evidente nos próximos passos do processo) de que indivíduos possam realizar cirurgias do gênero e, além disso, alterarem o seu registro civil.

Nos próximos textos da coluna, vou mergulhar nesse processo e na cobertura que a mídia fez dele, para conhecermos melhor a repercussão das primeiras CRSs no Brasil e a maneira como tais cirurgias foram entrando no horizonte do inteligível.

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