Por que pessoas negras não são reconhecidas como pioneiras no mundo da moda?

Harry Styles não é tão revolucionário e precisamos reconhecer as contribuições da cultura negra.

O ator e cantor Billy Potter, conhecido por sua interpretação na série Pose, se envolveu em uma grande discussão nesta última semana após compartilhar algumas declarações em entrevista ao The Sunday Time.

Getty Images | Rich Fury / Equipa

Sem papas na língua, ele comentou sobre sua carreira, criticou a indústria da moda e a revista Vogue por estampar Harry Styles como o primeiro homem a usar um vestido na capa de dezembro (2020).

“Eu, pessoalmente, mudei todo o jogo. E isso não é ego, é apenas um fato. Eu fui o primeiro a fazer e agora todos estão fazendo”, disse o astro de ‘Pose’ ao afirmar que a indústria da moda o aceitou porque precisaram. Ele argumenta: “Eu criei toda uma discussão [sobre moda não-binária] e mesmo assim a Vogue coloca Harry Styles, um homem branco hétero, em um vestido na capa pela primeira vez”.

O assunto se tornou um dos mais comentados do Twitter na segunda-feira (17) e abriu um debate sobre o não reconhecimento das contribuições negras ao mundo da moda.

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Entre as principais opiniões compartilhadas nas redes, muitos  desconheciam o pioneirismo de comunidades africanas e dos grandes ícones negros ao conceito de roupas sem gênero. Por isso, vamos à aula de história básica por aqui:

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Para quem ainda não sabe, a moda sempre foi usada como um definidor de classes, gênero ou grupos e é considerada uma das maiores formas de expressão humana, já que é uma maneira de revelarmos com o que nos identificamos sem de fato emitir palavras.

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Tanto é que muitos pesquisadores analisam por décadas a nossa  relação com esse conceito da moda ao longo do tempo, buscando investigar como influenciou nas construções dos costumes e preconceitos que integram a sociedade. 

Segundo alguns antropólogos, o surgimento da roupa está relacionado às necessidades do ser humano de esconder sua nudez e de se proteger do frio, da chuva ou do calor desde 600 mil anos a.C.. 

No Egito e em outras civilizações da antiguidade, a moda e a identidade caminhavam juntas e eram usadas inicialmente para definir posições sociais.

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Assim, vivenciamos por muitas décadas uma padronização das roupas, onde não havia diferenciações muito bem definidas entre as vestimentas femininas e masculinas, mas sim de hierarquias sociais. 

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Apenas durante meados do século XIV que passamos a classificar o que era destinado aos homens e às mulheres.

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Foi assim que muitos reis e rainhas do continente Europeu passaram a ser considerados pioneiros por sua moda irreverente e extravagante. Surgiram os robustos vestidos junto a penteados exuberantes como o rei Luis XIV da lendária rainha Maria Antonieta, conhecida como ícone de moda.  

Já no período da Belle Époque até a Primeira Guerra Mundial, Paris foi considerada o “berço da moda” devido a grandes nomes, incluindo o  "Pai da alta-costura"  Charles Frederick, posteriormente a revolucionária Coco Chanel e tantos outros estilistas renomados.

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Porém, é de se assustar quando analisamos toda essa história, e percebemos como as contribuições do Continente Africano nunca foram bem vistas ou sequer reconhecidas como moda. 

Basta você pegar os principais livros de referência de estilo das últimas e buscar mais sobre o pioneirismo das vestimentas africanas, para perceber que mal são mencionados ou reconhecidos. Isso se deve ao racismo estrutural, porém é preciso analisarmos o que está além disso.

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Quando a VOGUE escolheu Harry Styles para o ser o primeiro homem a estampar sua capa de revista, esqueceu de pontuar que ele não foi o pioneiro ou tão revolucionário quanto parece por utilizar um vestido.

Reprodução | Vogue

Assim como senso comum, eles ignoram também que ao redor do mundo a cultura negra trouxe diversas contribuições para o universo da moda sem gênero, assim como para a origem da moda em si. 

Atualmente é fato que a moda é uma das maiores maneiras de atribuição de gênero, mas desde as primeiras civilizações africanas percebemos o quão revolucionário já eram suas vestimentas.

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Muitas das tribos e comunidades propunham mesmo antes dos reis e rainhas europeus a exuberância, a cor, a maquiagem e sobretudo a anulação total de gênero dentro da moda.

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A concepção do que é do homem ou da mulher foge da lógica eurocêntrica dentro de África e em meio aos seus descendentes afro americanos. Como já pontuei no texto que escrevi sobre Xica Manicongo, muitos sujeitos escravizados passaram por uma anulação social de sua identidade e cultura quando chegaram em colônias europeias.

O antropólogo Luiz Mott identificou que no século XVI, Xica mesmo já se vestia com um pano amarrado com nó para frente, similar às vestimentas dos quimbanda (termo bantu para definir “invertido” “inversão” ou “curador”).

É importante ressaltar ainda a influência negra na moda já na contemporaneidade por volta da década de 1970 com os Bailes de Vogue e a presença de figuras na mídia como Prince.

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Com seu visual característico e icônico, o músico norte-americano foi a prova de que a Beleza não tem gênero e desafiou os limites da masculinidade, assim como Billy Potter hoje em dia. 

Contudo, quero escurecer aqui que nada se trata de um julgamento ou “cancelamento do Harry Styles”, mas sim uma crítica a indústria da moda como um todo, que historicamente se recusa a dar os créditos a quem realmente foi pioneiro e revolucionário. 

Vamos confessar que Styles pode até representar uma quebra de paradigmas ao usar roupas ditas femininas e vocês podem comemorar esse feito, porém não podem ignorar que estruturalmente pessoas brancas sempre são reconhecidas como tendência na moda enquanto nós seguimos sendo as aberrações. 

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