Você conhece a história de Xica Manicongo?

Considerada a primeira travesti do Brasil, Xica é símbolo de resistência e luta para a comunidade LGBTQIA+.

BuzzShe

Reprodução

Capa do cordel "Sertransneja", que traz uma gravura que representa Xica Manicongo.

A história do movimento LGBTQIA+ é marcada pela invisibilidade de diversas personalidades trans que foram fundamentais para a garantia de direitos da comunidade.

Justamente por isso, poucas pessoas têm conhecimento sobre as práticas de resistência que antecederam a Revolta de Stonewall e tiveram como protagonistas travestis a frente de seu tempo. 

No Brasil, a população transgênero sempre foi historicamente perseguida e marginalizada a partir de uma crença da sua anormalidade diante das pessoas cis. A partir do século XVI, surgiram novas leis que buscavam ditar as condutas, normas sociais e até o modo correto de se vestir.

Como exemplo, temos o Código de Ordenações Filipinas que proibia expressamente toda e qualquer forma de “inversão dos gêneros” através de ato sexual ou vestimenta. A sodomia (prática do sexo anal) chegou a ser considerada um crime de lesa-majestade, e a pessoa que fosse pega praticando o ato era queimada viva diante de fiéis.

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Poucos registros históricos falam sobre a existência de pessoas que iam contra essas leis e desviavam desta lógica de normalidade. Porém, uma denúncia feita aos Tribunais do Santo Ofício em 1591 tornou Xica Manicongo a primeira travesti da história do Brasil.

Tal descoberta surgiu através das pesquisas realizadas em documentos oficiais arquivados na cidade de Lisboa, em Portugal. O antropólogo Luiz Mott identificou que Xica se vestia com um pano amarrado com nó para frente, similar às vestimentas dos quimbanda (termo bantu para definir “invertido” ou “curador”). Já o seu sobrenome, Manicongo, era um título utilizado pelos governantes no Reino do Congo para se referir aos seus senhores e às suas divindades. Dessa forma, podemos então traduzir o nome dela como Rainha ou Realeza do Congo.

Vinda para o Brasil como sujeito escravizado, ela passou por uma anulação social da sua identidade e viveu em Salvador desafiando muitas normas de sua época. Foi trabalhando como sapateira que ela se tornou uma figura imponente por toda Cidade Baixa, e era conhecida por ser muito namoradeira.

Historiadores afirmam que Xica possuía uma grande resistência em se vestir com roupas masculinas, pois isso ia contra as tradições de sua origem, onde ela assumia sua identidade feminina e vivia enquanto cudina (divindade do Congo que pode ser equivalente a uma identidade de gênero decolonial).

A resistência de Xica diante das normas da cisgeneridade no século XVI lhe rendeu uma denúncia aos Tribunais do Santo Ofício, e ela foi acusada pelo crime de sodomia.

Por consequência da sua origem ser caracterizada como uma divindade, ela também foi pejorativamente criminalizada enquanto membro de uma quadrilha de feiticeiros sodomitas, a quimbanda. 

Sufocada pela pressão social do meio em que vivia e tentando fugir da pena de morte, Manicongo se viu obrigada a negar sua identidade e viver sob a constante vigilância da Igreja. Até os fins do século XX, Xica era ainda considerada homossexual (erroneamente) por estudiosos, o que apagou por décadas a possibilidade de existência de travestis no Brasil Colônia. 

A ausência dessas memórias construiu um grande processo de apagamento histórico e de desconhecimento social sobre a população trans. Uma tentativa cruel de nos manter à margem da história do Brasil e alimentar o processo de desumanização dos nossos corpos. 

Atualmente, a artista plástica, publicitária e ativista trans Neon Cunha refere-se à Xica Manicongo como símbolo de resistência e luta para a Comunidade Trans Brasileira. Apesar de toda essa invisibilidade produzida pela cisgeneridade, se faz necessário reafirmarmos que os nossos passos vêm de longe e a história da primeira travesti do Brasil nos ajuda a ter consciência de quem somos. 

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XICA MANICONGO VIVE!

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