Como ilustrar um livro sobre um personagem trans ajudou minha autoaceitação e conhecimento

Um relato do ilustrador Nathan H. Borges.

Nota da redação: o livro "Ariel - A Travessia de um Príncipe Trans e Quilombola", do escritor Jared Amarante, conta a história de uma criança que já nos primeiros anos de vida precisa lidar com conflitos de identidade e pertencimento.

Na história, Ariel é um garoto trans que, ao não ser aceito pela própria família, cria na sua mente um lugar onde ele é amado e respeitado.

As ilustrações da obra são de Nathan Borges, ilustrador e tatuador de João Pessoa. Sua história de vida possui vários pontos em comum com a trajetória do personagem principal, e por isso o convidamos para escrever o relato abaixo.

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Giostri

Boa parte das pessoas trans começam a se entender (ou se desentender) na infância, e esse foi o meu caso. Por mais que eu fosse orientado a usar coisas “femininas”, eu sabia que tinha algo diferente na minha forma de ver o mundo e não entendia por qual motivo as pessoas insistiam em me botar na "caixinha do gênero".

Com o passar dos anos, em uma longa caminhada de reafirmações, comecei a enxergar como a sociedade nos molda e tenta nos colocar no nosso suposto devido lugar. Foi aí que percebi o quanto eu estava desconfortável com tudo isso, assim como Ariel, personagem principal do livro que não aceitou se acomodar no lugar onde foi posto à força pelas mesmas pessoas que diziam amá-lo.

Na história, a mente de Ariel o conduz ao Quilombocéu, lugar de aceitação e respeito. Lá, ele passa a questionar exatamente as mesmas coisas que eu mesmo já questionei: como as pessoas podem dizer o que eu posso ou não fazer? Por que todos os meus amigos podem sair sem camisa e eu não? O amor é só do homem para a mulher? Por que estão chamando minha identidade e o meu corpo de pecado?

São perguntas complicadas de se responder para uma criança, e para falar a verdade eu não sabia que elas existiam dentro de mim até começar a me entender como trans aos 15 anos de idade. Ao contrário de Ariel eu não tive a voz do Quilombocéu para me guiar, mas descobri sozinho que eu mesmo poderia me conduzir pela minha própria travessia.

Depois de um tempo, lá por volta dos meus 17 anos, passei a notar cada vez mais a existência de pessoas como eu: homens e mulheres trans e também pessoas trans não-binárias. Me reconhecer em outras figuras foi a melhor coisa que já aconteceu na minha vida, e eu me senti como o Ariel quando ele chegou naquele lugar onde foi aceito, amado, respeitado e validado. Lá ele entendeu que também pode ser príncipe, e a sua existência foi coroada.

Ilustrar essa obra também me fez refletir sobre o que acontece depois que você se aceita e finalmente coloca a sua coroa, porque ao contrário do que muitos pensam, a luta não acaba aí. Nós precisamos reafirmar constantemente que nossos corpos ocupam o universo, que há beleza e competência em nós. Isso faz com que as travessias das gerações futuras sejam cada vez mais tranquilas e acolhedoras.

O próprio Jared Amarante, autor do livro, me disse que eu sou o responsável pelo fôlego do Ariel. Porém, eu estendo esse crédito a todas as pessoas trans. Dar vida a este personagem foi como se eu estivesse me enxergando no começo do meu entendimento como trans, principalmente por ele ser uma criança. Ele não é aceito por sua família, e inclusive é proibido de se desenhar como um menino. Mas ali, no papel, ele não está pedindo uma opinião. Ele está dizendo quem ele é.

Meus pais também não entenderam no início, e já me disseram coisas que machucaram a minha alma. Muitas vezes por causa da desinformação, e outras por causa do preconceito brutal. A forma como uma criança é vista e entendida provavelmente vai afetar sua autoestima para o resto da vida. Por isso, histórias como a minha, a do Ariel e a de tantas outras pessoas são necessárias para lançar uma luz sobre esse caminho que é tão difícil. Poder usar a minha arte para realizar um trabalho tão lindo e delicado foi uma honra, e também foi uma forma de perceber o quanto a comunidade trans carece de representatividade.

Por exemplo, tem uma passagem no livro em que Ariel dança valsa. Ele é um garoto gordo e negro, e ao procurar inspirações para desenhar esse momento acabei ficando muito triste porque há pouquíssimas ou quase nenhuma referência de ilustrações de pessoas gordas dançando, quem dirá de pessoas gordas, negras e trans. O Ariel é tudo isso, mas ainda precisamos ver muito mais pessoas como ele protagonizando as mais variadas formas de arte. Essa falta de representatividade para um público tão grande, que precisa tanto ser visto, faz com que a gente se sinta como se não estivéssemos vivos de verdade.

As pessoas trans ou que fazem parte de outros grupos que são alvo de discriminação precisam desse referencial para se encontrar e saber que elas não estão sozinhas. A publicação de obras como "Ariel - A Travessia de um Príncipe Trans e Quilombola" é uma luta vencida para a minha comunidade, e também para a sociedade de modo geral. É gratificante pensar que daqui a muitos anos esse livro pode servir de inspiração para muita gente que está passando por essa jornada.

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O livro "Ariel - A Travessia de um Príncipe Trans e Quilombola" será lançado no próximo dia 30 em um evento online onde também vai rolar um bate-papo com o escritor Jared Amarante. Para adquirir seu ingresso é só clicar aqui.

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