“Quem foi? Foi a bicha.”

DellaFancy fala sobre exotificação, topos e chefias.

Não faz muito tempo, estava conversando com um colega, também homossexual, sobre como nossa sexualidade influencia no convívio social e profissional.

Ele, heteronormativo, ostenta uma barba na cara, boné pra trás e trabalha em um escritório. Eu, afeminada, trabalho com criação de conteúdo, drag queen e tudo aquilo que vocês já sabem.

Durante a conversa, ele me contou infortúnios que acontecem no escritório, como por exemplo o dia em que o chamaram de “bicha” durante uma reunião. Algo que até pra mim, orgulhosamente bicha, é completamente descabido num ambiente profissional. 

Ele havia cometido um erro, e ao perguntarem quem foi, responderam que “foi a bicha”.

Tudo errado. Obviamente me projetei naquela cena e não pude deixar de pensar: e se fosse comigo?

Ora, se ele que segue todas as expectativas estéticas da sociedade passa por essa e outras situações vexatórias, como seria se de fato ele parecesse uma bicha? Como seria se ele se parecesse comigo? 

O papo evoluiu.

Ele disse que foi atrás de seus direitos e, algum tempo depois, tornou-se gerente. Contou que apesar de seus privilégios, não foi um caminho fácil. Fiquei feliz por sua conquista e disse que agora, estando numa posição de alto escalão na empresa, poderia ajudar a compor a grade de funcionários com outras pessoas LGBTQIA+.

Ledo engano.

O papo fez uma curva inesperada. Meu colega compartilhou a dificuldade que sentia em lutar pela causa uma vez que as pessoas não o reconheciam enquanto um homem gay. Disse que o viam como alguém influenciado pela “militância” e, quando dei por mim, meu colega confessava uma vontade latente de “virar” uma mulher trans ou uma gay afeminada.

Sim, eu sei.

Do mesmo buraco que saem pessoas brancas que adorariam ser pretas porque acham nossa cor linda, existe o nicho de gays que adorariam ser travestis. Os motivos são variados: adorariam ter o corpo, o cabelo, o luxo, dar o close, usar o salto, a navalha, a Europa.

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Exotificação.

Meu colega, no caso, adoraria que o reconhecessem como pessoa LGBTQIA+. 

Para ele, nada mais revolucionário do que a linha de frente - quanto a isso, errado não está. 

Porém, o que ele não entende é que, se ele pertencesse à linha de frente como a gay afeminada ou a travesti que tanto almeja ser, ele certamente não estaria no lugar que está hoje. Meu colega, com 39 anos de idade, talvez nem estivesse viva no país onde a estimativa de vida da população trans é de 35 anos. 

Não parecer uma bicha e não ser uma travesti foi justamente o que o levou até lá. Reconhecer esse privilégio é o primeiro passo para usá-lo em prol dos seus e das suas. 

Ignorá-lo é permanecer na inércia. 

É contribuir pra que só pessoas como ele cheguem aos topos, gerências e chefias. 

Mais comum do que a gente imagina.

Estamos de olho. 

Mudamos de assunto.

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