'Jungle Cruise' é racista e desrespeitoso com a história do Brasil

Não dá pra entender como esse filme foi lançado desse jeito.

Divulgação / Disney

Quando viaja pra fora, muito brasileiro fica surpreso por ser transformado em latino, como isso dissesse respeito a sua cor e não a geografia. Isso, na prática, significa uma coisa: salvas raras exceções, de uma galera com semblante europeu (e um sotaque imperceptível), não importa seu sobrenome de herdeiro, sua conta com mais dígitos que a média ou o pantone da cor da sua pele. Ter CPF te transforma imediatamente na Sol, dentro do porta-luvas, em "América". 

Brasileiros, mexicanos, colombianos. Do Texas para baixo, todos somos uma só coisa. Sem particularidades ou culturas próprias. Por isso que a capital do Brasil vira Buenos Aires em qualquer bar de Nova York. Talvez até te dêem tacos, por que é o que a gente gosta, né?

Os costumes latinos, as tradições dessa parte da América e a cultura desse povo todo são menosprezados, como se fossem exóticos, menos importantes do que a de outras partes do mundo. Todo esse textão para resumir: "Jungle Cruise", recém-lançado, faz exatamente isso com o Brasil.

Brasil para inglês ver.

Divulgação / Disney

Quem olhar na ficha técnica, verá que o filme foi dirigido pelo europeu Jaume Collet-Serra, e escrito pelos estadunidenses Michael Green, Glenn Ficarra e John Requa. Mas bem antes dos créditos dá pra saber que não tem nenhum brasileiro envolvido na história do longa-metragem quase que inteiramente ambientado nos arredores de Porto Velho (RO). Ainda assim, ouvir uma frase em português é uma tarefa complicada. 

O dono dos barcos da cidade, Nilo Nemolato, é interpretado por Paul Giamatti, com visual sujo de dentes dourados e um sotaque estranhamente italiano. 

O maior barqueiro da região? É The Rock, que com seu inglês americano é, mais tarde, apresentado como nascido na Europa. 

Os outros protagonistas? Um par de irmãos. Ingleses. Que vêm ao Brasil com um artefato indígena roubado há anos por expedições coloniais.

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A falta de representatividade rapidinho dá lugar a uma série de erros históricos que, em uma produção com orçamento avaliado em US$ 200 milhões, são extremamente desrespeitosos.

Disney / IMDb

A moeda do Brasil no filme, por exemplo, é o Real. O que seria um baita acerto, se o longa não se passasse em 1917, quase 80 anos antes da primeira cédula do tipo ser emitida. 

Os nomes dos lugares? Todos pronunciados com um espanhol intacto. "Lágrimas de Cristal"? Hahaha não: "Lagrímas de Cristaul", como você ouve aqui

Os colonizadores da região, portugueses? Não, espanhóis. Que, claro, passaram pela Amazônia no período exploratório, mas, já que o filme é sobre o Brasil… Por que transformar esse tipo de exceção em regra? 

Palavras do espanhol, inclusive, são parte fundamental do filme. O barco de The Rock, por exemplo, chama-se "La Quila", e crianças são vistas falando em espanhol com turistas. Usos da língua que podem até ser justificados, mas - de novo - para que?

O problema maior, no entanto, aparece na representação indígena do filme.

Disney / IMDb

Em determinado ponto da história, indígenas faz um ataque fictício a invasores. Com vestes que nada caracterizam uma etnia amazônica, e tons estereotipados na fala, a impressão final é a de que, durante a produção, a pergunta em momento nenhum foi "como fazer isso de modo respeitoso?". O visual "exótico" parece motivo de piada. 

Mais uma vez, o próprio filme tenta justificar a cena dizendo que a encenação era uma "bobagem uga-buga", mas, em momento nenhum, há espaço para mostrar uma representação digna. 

A coisa piora em um momento específico com a chefe da aldeia, claro, não interpretada por uma indígena brasileira - mas pela mexicana Veronica Falcón (somos todos só latinos, lembra?).

Sua personagem Sam (?), topa ajudar europeus a encontrarem uma fortaleza protegida por sua aldeia… Em troca de um chapéu. 

Sam refaz os passos de indígenas da vida real que, sem saber, contribuíam para o genocídio de seus pares. 

Pior: a cena reforça a falácia de que indígenas eram estúpidos, por trocarem informações e joias preciosíssimas por bens comuns e de pouco valor aos colonizadores, como chapéus ou espelhos.

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Ao mesmo tempo, o protagonismo dos mocinhos nunca é questionado. 

Disney / IMDb

Tudo bem fazer essa troca, afinal, eles são bonzinhos. Tranquilo vir ao Brasil em busca de uma planta medicinal - sem que nenhum brasileiro estivesse envolvido no processo. Não há empecilho nenhum em ter peças culturais importantes, saqueadas de aldeias indígenas… Se elas te levarem ao progresso.

Mesmo com alguns dos vilões sendo colonizadores espanhóis, o filme, em momento nenhum reflete sobre o fato de que os protagonistas também repetem algumas ações de tom colonialista. 

De uma forma ou de outra, o diretor espanhol dá a entender que, mesmo depois da nossa independência, não teria problema repetir certas atitudes dos antepassados dele. 

A real é que "Jungle Cruise" é problema muito antes de virar filme e foi considerado um símbolo racista.

Reprodução / Pinterest

Uma das primeiras atrações da Disneylândia, Jungle Cruise, foi imaginada anos a fio pelo próprio Walt Disney, que queria compartilhar com seu público a experiência que ricaços como ele tinham, de conhecer animais e florestas únicas. O plano, inclusive, era colocar bichos de verdade no brinquedo.

Pra fazer rolar, então, ele chamou Harper Goff, designer da Disney. Mas Goff não tinha feito as mesmas viagens que o patrão, então usou como base da atração um outro filme constantemente acusado de racismo, "Uma Aventura na África". O longa, olha só, fala sobre um americano - branco - que vive na África lidando com adversidades que vão da natureza aos primitivos moradores locais. 

Tendo isso em vista, não é difícil imaginar que a atração contava com piadas sobre minorias.

Como você vê no que foi um cartão postal do parque, uma das esculturas mais famosas do brinquedo, por exemplo, retratava quatro guias de safari negros escalando um pedaço de pau, e sendo atacados por um rinoceronte e uma hiena - enquanto um explorador branco se salvava na ponta do mastro.

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A própria Sam era símbolo do racismo da Disney com indígenas. 

Reprodução: disney.fandom.com / FigmentJedi 

Inspirada em outra estátua da atração, Sam era um homem negro que carregava cabeças humanas. No filme, seu gênero foi invertido, e ganhou um visual parecido com o de outra estatueta: Chief Nah-Mee, uma prima dele.

Não bastassem os vários esteriótipos sobre etnias indígenas, as esculturas também eram constantemente acompanhadas de piadas racistas contadas pelos guias do brinquedo.

"Eram", no passado, mas não há muito tempo. Tanto a escultura dos guias contra o rinoceronte quanto a de Sam foram foram retiradas do parque agora, em 2021! 

Elas estavam expostas desde 1957. 

"Calma, pô, mas chamar de racismo… Não é pra tanto". Na real, é sim, senhor. 

Disney / IMDb

Em uma produção deste tamanho, não há desculpas para desleixo com a nossa cultura, a não ser que ela não importe o suficiente. 

É inimaginável que, em 2021, a gente tivesse um filme que se passasse na África sem protagonistas negros. É impensável um filme na Ásia que faça piadas com estereótipos. Não é possível, então, que isso aconteça no Brasil. 

Meia hora de Google em cima desse roteiro e uma pessoa brasileira envolvida no processo criativo poderiam render menos ofensas. Coisas muito pequenas para uma produção desta dimensão, mas que salvariam o longa - e ainda poderiam homenagear o nosso país. 

No lugar disso, recebemos uma surra de inverdades, preguiça na verificação de fatos e estereótipos sendo reforçados em escala global. Não dá.

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