O pacto da branquitude em “Ilhados com a Sogra”

Como você, pessoa branca, reage quando alguém diz que você cometeu um ato racista?

Você deve ter ouvido falar em “Ilhados com a Sogra”. O programa tem muito do que um reality precisa para ser bom: uma boa apresentadora, personagens carismáticos, gente para achar fofa, gente para detestar, problemas reais, problemas completamente sem sentido, histórias emocionantes e o melhor de tudo: mães (ou sogras, dependendo do ponto de vista).

Ricardo Carvalheiro/Divulgação Netflix

Se você não sabe do que eu estou falando, esse é o novo reality show da Netflix, apresentado pela Fernanda Souza. A proposta é mandar genros, noras e sogras que supostamente têm algum problema de relacionamento para uma ilha. Eles participam de competições para ganhar pontos e de dinâmicas terapêuticas para trabalhar os problemas. Você chora, ri e xinga, tudo no mesmo episódio. Se você quiser saber mais, escrevemos sobre o reality aqui!

Como em tudo que envolve gente, ainda que essas pessoas estejam sendo filmadas (e elas saibam disso!), os problemas da vida real também aparecem. E um deles, muito grave, apareceu já no segundo episódio, quando a Severina (uma das sogras) se engana e entende que uma resposta mais grosseira do Felipe (um dos genros, mas não o genro dela) foi para ela. 

Thyago e Severina, genro e sogra, da família Tenório. Reprodução/Netflix

O teor da fala em si importa menos nesse contexto. O mais forte é o que vem depois disso. Ela fica chateada, sai da roda de conversa e vai para um canto ficar sozinha e chorar. Um tempo depois, a Silvia (que é uma das noras) vai atrás dela para conversar. Até que a Severina conta que ficou chateada com o Felipe e diz: “Eu percebi que ele não aceita o meu jeito de ser. Eu ser inteligente. Isso, para ele, é uma afronta, porque ele é um menino branco, bonito da Zona Sul. Eu sou preta, nordestina, diarista.”

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A Silvia escuta, diz que não é isso, que a Severina é muito inteligente. Um tempo depois, ela chega em uma rodinha que está rolando num dos quartos, em que alguns participantes estão falando sobre isso, e conta o que a Severina falou com ela. 

E aí a coisa desanda muito. Assim que ela fala (e a todo momento ela ressalta muito que defendeu o Felipe durante a conversa), algumas das outras pessoas que estão no quarto já começaram a falar “ah não, aí não!”. E o Felipe responde: “Não! Se ela entrar nesse lugar, vai feder. Ela está sendo uma baita de uma irresponsável e leviana de levantar esse tipo de questão”. 

No episódio cinco, o assunto volta à tona. A família Tenório, da qual Severina faz parte, é confrontada depois de uma dinâmica. No meio da discussão, a Severina começa a explicar o que tinha entendido na noite em que ficou chateada. Ali, fica claro que ela entendeu errado mesmo, que a tirada não era para ela. 

Socorro e Felipe, sogra e genro, da família Sassone. Reprodução/Netflix

Ela explica exatamente tudo o que falou para a Silvia sobre a sua leitura do Felipe. E a reação dele é dizer: “Isso é me acusar de uma coisa muito grave! É crime nessa porra desse país!”. A Severina explica que tentou chamá-lo para conversar três vezes, mas ele não quis, e ele responde: “As conversas não tem que acontecer quando você quer. O ofendido fui eu. Não faça de forma leviana. Você é uma mulher inteligente o suficiente para saber que não se pode fazer isso. São pautas muito caras para mim”.

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Naquele momento, ela deixa de ser a pessoa ofendida para ser a pessoa que está ofendendo (pelo menos, na cabeça das outras pessoas que estão ali). É por isso que, no fim, ela ouve do Felipe que ele é o ofendido. 

E acaba tendo que escutar também que essa pauta (o racismo) é uma pauta cara para ele. Tudo bem, pode ser, a gente espera mesmo que seja, afinal de contas, o papel das pessoas brancas é ser antirracista na prática. Mas me parece muito fora do lugar que, ao ser confrontado por uma pessoa preta sobre algo que ela sentiu nas suas atitudes, a sua forma de negar isso seja chamando a pessoa de leviana.

É importante lembrar também que, embora a gente faça parte de algum grupo minorizado, isso não nos torna incapazes de praticar opressões contra outros grupos minorizados.

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Para além de um reality show, como você, pessoa branca, reage quando alguém diz que você cometeu um ato racista? Se a sua primeira atitude é gritar, ameaçar e botar o dedo na cara da pessoa que está te dizendo isso, tem algo errado. Se a sua atitude é apenas começar a negar desesperadamente, tem algo errado. Se a sua reação é dizer que o ofendido é você por a pessoa cogitar que você faria isso, tem algo errado.

Se você se entende como uma pessoa antirracista, o seu papel em um momento como esse é o de, no mínimo, tentar entender de onde vem aquele apontamento. Ele pode não fazer sentido para você, pode não ter sido a sua intenção e talvez você sequer consiga entender como aquela atitude sua pode ter sido encarada como um ato racista. Mas nos cabe entender que, apesar do racismo ter sido criado por pessoas brancas, não são os brancos que devem definir os limites do que é ofensa, do que é preconceito e do que é discriminação. 

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