Leitores soropositivos falam sobre como é viver com HIV

O dia a dia pode ser mais simples do que o de quem tem diabetes, mas o estigma da doença ainda é muito forte.

Depois que o leitor Maurício respondeu todas as perguntas que você sempre quis fazer para um cego, outras pessoas maravilhosas se sentiram dispostas a falar sobre suas experiências de vida.

Fábio Marotta, soropositivo há 12 anos, foi um dos que se dispôs a conversar e responder dúvidas.

      

Sou soropositivo e faço tratamento há 12 anos. Posso lhes dizer com a maior segurança que nós, soro+ somos invisíveis. Há diversas campanhas para a prevenção e quase nada sobre como é viver com essa doença que nos acompanhará por toda a vida. (...)

"não toma a vacina de febre amarela"
"tá se tratando?"
"use camisinha!"
"como você pegou?" (essa é terrível, dá vontade de responder "chupando a rola do seu pai, imbecil")

Essas perguntas fodem mais ainda o psicológico, que aliás é o fator que mais leva os soro+ à morte (posso procurar alguma pesquisa que dê taxas de suicídio desse grupo).

Trago novidades: meu dia a dia é mais simples do que quem tem diabetes ou sinusite crônica. Por outro lado eu carrego um estigma que deixa minha auto estima em frangalhos, me impede de me relacionar afetivamente e fico em constante estado de alerta - o que será de mim se alguma doença oportunista me pegar de vez e me deixar debilitado?

Carregar o HIV é uma condição. Doença é a discriminação com quem tem.

Bom, não sou especialista em nada, o que tenho é minha própria experiência para dividir, se lhes for útil. E caso mais alguém aqui seja soro+ e queira compartilhar as suas, cheguem mais.

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Junto às respostas do Fabio, está também a de uma outra leitora que viu o post dele no grupo, quis contribuir com sua experiência, mas sem se identificar, mais um reflexo do quanto que o estigma que envolve a doença ainda é muito forte e negativo.

"Ter AIDS e ser soropositivo são coisas diferentes?"

"Sim. A AIDS é a manifestação do vírus sem o devido controle. Ela aparece através de doenças oportunistas, como pneumonia, sarcoma, determinados tipos de câncer, etc" - Fabio Marotta.

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"Como é sua experiência com relacionamentos após o diagnóstico?"

Stella_photo20 / Getty Images

"No meu caso, eu basicamente não me relacionei com ninguém a ponto de contar, o estrago nesse aspecto da vida foi realmente grande. E eu me sinto desconfortável em procurar caras através da sorologia. Vamos ver se alguém aparece pra contar porque eu também quero saber!" - Fabio Marotta.

"Meu namorado ficou sabendo antes do momento que eu realmente quis contar porque fiquei me sentindo muito culpada por ele não saber e acabei falando.

O medo da não aceitação é enorme e real, mas ao mesmo tempo você tem nisso um 'teste' pra saber se a pessoa vale a pena sabe, se for muito cabeça fechada eu já nem quero! Mas contando a história completa pra ele, foi super de boas, ele fez perguntas, tirou dúvidas comigo e só não passou em consulta comigo e com a minha médica porque o horário de trabalho dele não permite" - E.B.

"Quando você está em um relacionamento você tem algum cuidado especial ou é só camisinha mesmo?"

Andrewsafonov / Getty Images

"Só camisinha mesmo. Nem tanto pra proteção dele contra o HIV, já que eu tenho carga viral indetectável e portanto não transmito. Mas as DSTs estão aí, né?" - E.B.

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"O que é carga viral?"

"Quando você é contaminado, o vírus passa a circular no seu sangue e também se esconde nas suas células, onde os remédios não conseguem alcançar. Esses vírus que estão circulando são os que fazem mal real, eles se reproduzem mto rápido e acabam com as defesas do corpo, fazendo com que qualquer resfriado vire uma pneumonia e coisas assim. Eles que são considerados a carga viral alta, quando a contagem de vírus está muito elevada.

Quando você passa a fazer uso do tratamento, toma os remédios todos os dias no horário certo e cuida da alimentação, esses vírus circulando começam a morrer. E aproximadamente seis meses depois do início do tratamento os exames já não detectam mais eles, porque sobraram apenas os vírus dentro das células, que os remédios não conseguem matar. E aí você passa a ser um paciente indetectável que não transmite. Claro que não pode descuidar, senão os vírus voltam a se reproduzir loucamente, e por isso o tratamento é pra vida toda". - E.B.

"Todo mundo que está se tratando direitinho se mantém com carga viral indetectável?"

"Sim, se for com os remédios adequados e a adesão for boa, é isso mesmo. Mas infelizmente tem pessoas com dificuldade de encontrar um remédio que não dê muitos efeitos colaterais, e por isso e n motivos acabam não se tratando.

Já vi gente que 'sabia' que ia morrer e não queria se dar ao trabalho de tentar, então apenas desistiu. Por isso investem tanto na praticidade dos remédios (além da cura), pra não haver mais esse tipo de desculpa". - E.B.

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"Como é o seu dia a dia em relação a doença?"

Dan_alto / Getty Images

"Minha rotina é o mais simples possível em relação a isso, pois tomo o esquema 3 em 1 - os três princípios ativos mais usados no tratamento num comprimido único, tomado antes de dormir. Muito eventualmente me dá uma leve tontura se demoro pra deitar (é gostosinho, inclusive)" - Fabio Marotta.

"Com o tempo vai evoluindo na praticidade. Por exemplo, eu já tive que tomar um que precisava ser refrigerado. Atualmente tomo três comprimidos apenas no horário do almoço" - E.B.

"O que você gostaria de ter escutado ao revelar para as pessoas que era soropositivo?"

"Geralmente eu conto quando há algum propósito e algum laço com a pessoa. Mas em dezembro, num dia de auto estima em frangalhos eu chutei o balde e falei sobre isso (HIV + invisibilidade + emocional no lixo) na minha timeline de modo público. Na minha lista há basicamente pessoas do trabalho e do terreiro de umbanda onde trabalho, então as reações vieram também pessoalmente em forma de abraço, respeito e alguns relatos. É reconfortante. Por outro lado não escapo da pergunta mais cretina: "como você contraiu?" Esta SEMPRE vem de héteros, homens em sua maioria e vem carregada de julgamento.

Não olhe seu amigo como uma bomba relógio! Se a pessoa está dividindo isso contigo é porque há uma confiança, preze isso. Oferecer conforto, ouvidos, companhia pra ir ao médico ou fazer exames, dar a certeza de que você não vai embora por isso. E jamais mude o foco pra outra coisa. Nessa hora a gente não quer saber que você morreu de medo ao fazer o teste, que viu uma reportagem em 2009 sobre uma possível cura, se não sabe o que dizer SÓ ME DÁ UM ABRAÇO que o foco aqui sou eu, ok?". - Fabio Marotta.

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"Os profissionais da área médica estão preparados para dar o diagnóstico?"

Alex Levine / Getty Images

"O que posso dizer é que o gastro que me deu a notícia em 2006 não tava nem um pouco preparado! Mas é curioso ver a reação de outros médicos quando menciono a sorologia. A maioria já normalizou mas rolam uns olhos arregalados às vezes. Um clínico geral perguntou PRA MIM se o antibiótico que ELE estava receitando daria reação com os ARV". - Fabio Marotta.

"Na prática, tem alguma coisa que a doença te impeça de fazer?"

Jacob Ammentorp Lund / Getty Images

"Na prática são as coisas já sabidas mesmo: doar sangue, tomar determinadas vacinas... Talvez algumas medicações (hoje são dezenas de princípios ativos e muitas combinações) possam demandar algum cuidado extra, mas não tenho essa experiência". - Fabio Marotta.

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"O que você acha do jeito que a cultura pop retrata os soropositivos?"

Globo Filmes / Reprodução

"Pensei bastante, não me vem fácil um exemplo recente. (E não me considero tão alheio à cultura pop assim). Quais figuras públicas assumidamente soropositivas a gente conhece além do Freddie Mercury e do Cazuza? Usá-los como referência só cristaliza a ideia de sentença de morte. Porra, se hoje é tratado como doença crônica, cadê as celebridades falando disso com naturalidade? Aposto um nude do Fábio de Melo que seus amigos sabem dizer quem de famoso tem lúpus mas não conhecem uma figura pop que tenha assumido ter HIV." - Fabio Marotta.

"O que mais já te surpreendeu de desconhecimento das pessoas?"

"Aqui mesmo no post uma garota 'explicando' que o vírus mata as 'células de defesa do corpo' e faz com que ele ataque a si mesmo. HIV NÃO É DOENÇA AUTOIMUNE. Alguém relatou também que a mãe de um amigo soro+ continua lavando as roupas separado e sequer encosta no filho". - Fabio Marotta.

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"A forma com que as pessoas encaram a questão tá mudando?"

"Tenho a impressão que sim. Mas é minha experiência pessoal, e entra na conta que eu também mudei a minha postura ao longo dos anos e isso influencia bastante". - Fabio Marotta.

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