75 anos de Belchior, um rapaz latino-americano

"Eu sinto tudo na ferida viva do meu coração!"

Belchior, o eterno Rapaz Latino-Americano, considerado por muitos um dos maiores e mais revolucionários compositores da música brasileira completaria 75 anos de idade neste 26 de outubro. Já faz 5 anos que ele se foi.

Com uma história de vida muito rica e também repleta de curiosidades e mistérios, Belchior se chamava Antônio Carlos Belchior. Em certa época, chegou a brincar com isso juntando os sobrenomes dos seus pais ao seu, formando Antônio Carlos Gomes Belchior Fontelle Fernandes, só para dizer que seria "o maior nome da MPB".

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Mas Belchior não precisava disso. Compositor de mão de cheia, saiu da cidade de Sobral, no Ceará, onde foi cantor de feira e poeta repentista na infância. De lá, foi para Fortaleza, onde estudou Filosofia e completou seus estudos num colégio de padres. Foi então que ele decidiu vivenciar um período de disciplina religiosa vivendo em comunidade com frades italianos.

Ali, Belchior estudou italiano, canto gregoriano e latim, que ele dominava. E foi nesta língua que ele compôs uma das grandes curiosidades de sua carreira: a canção "Corpos Terrestres", que ele gravou em 1978 para o seu álbum "Todos os Sentidos" com a participação das Frenéticas.

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Lá no começo, porém, Belchior batalhou muito e chegou a passar fome no Rio de Janeiro, onde junto com Fagner, Ednaldo, Amelinha e outros grandes nomes, criou um grupo que passou a ser chamado de "Pessoal do Ceará". Foi então que, com sua canção "Na Hora do Almoço", ele venceu o primeiro lugar IV Festival Universitário de 1971. Apesar da vitória, ele só gravou a música três anos depois.

Mas foi pelas mãos e voz de Elis Regina que Belchior chegou ao sucesso. Aqui, ele conta a Miele como aconteceu este primeiro encontro com a grande intérprete. A primeira regravação foi de "Mucuripe", em 1972, parceria sua com Fagner.

Esta canção tem também uma curiosidade: nascida apenas de livre inspiração de Belchior, sua primeira versão era desconhecida. Pouco depois, Fagner colocou a letra definitiva, primeiro gravada em disco de Belchior no suplemento musical do jornal "O Pasquim" ainda naquele ano (com piano e arranjo do também principiante Ivan Lins), e logo depois no LP de estreia de Fagner, em 1973, até chegar à voz de Roberto Carlos em 1975.

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Na primeira metade dos anos 70, Belchior apresentou-se em escolas, teatros, hospitais, penitenciárias, fábricas e na televisão até chegar a seu primeiro e LP em 1974. Mas foi em 1976, com "Alucinação", que ele se consagrou. Elis já havia gravado pelo menos duas canções deste álbum no disco inspirado em seu espetáculo "Falso Brilhante": "Velha Roupa Colorida" e "Como Nossos Pais".

"Alucinação" é considerado por muitos um dos mais revolucionários discos já produzidos na música brasileira. Não à toa, vendeu 30 mil cópias em apenas um mês e nele está registrada a canção que fez de Belchior um nome nacional: "Rapaz Latino Americano".

Entre as canções de "Alucinação" está uma das preferidas de seus fãs, "Sujeito de Sorte", aquela que diz: "ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro" e que nestes tempos sombrios voltou a ser frequentemente lembrada. Muitos atribuem estas palavras ao próprio

Belchior, mas trata-se de uma citação. E nela, mais um mistério: credita-se este verso oficialmente a Zé Limeira, um cantor e repentista analfabeto nascido na Paraíba há mais de 135 anos e conhecido em sua terra natal pelos versos sem muito sentido, mas perfeitos na métrica. No entanto, Zé viveu numa época em que não se preocupava com documentações, e durante muito tempo acreditou-se que o poeta sequer tivesse existido. Mas o "poeta do absurdo" existiu, sim. O que não se sabe exatamente é se estes versos, que apareceram publicados pela primeira vez em 1973, são mesmo de sua autoria ou de outro paraibano, Otacílio Batístia, também referência dos cantores e poetas nordestinos e que, ao ver as palavras chegarem ao sucesso estrondoso na voz de Belchior, tentou reivindicar para si a autoria. Mas o que importa é que hoje, vivos, podemos sim nos considerar "sujeitos de sorte".

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Em seu disco de 1977, "Todos Os Sentidos", Belchior registrou um grande sucesso que já havia ficado eternizado dois anos antes na voz de Vanusa: a canção "Paralelas", um dos hinos daquela década.

Em seu disco seguinte, "Coração Selvagem" (1978), foi a vez de registrar com sua voz outro grande sucesso, "Galos, Noites & Quintais", que, na voz de Jair Rodrigues no ano anterior chegou ao topo das paradas. Esta também era uma das canções preferidas de Chico Anysio, que chegou a cantá-la ao vivo no programa "Sr. Brasil", ao lado de Rolando Boldrin.

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Sempre inspirado, questionador e filosófico, no LP "Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo" (1979), Belchior lançou "Divina Comédia Humana", canção de grande sucesso em que dizia algo que parece mais atual do que nunca: "Não vou ser feliz direito / porque o amor é uma coisa mais profunda que um encontro casual (...) Eu quero gozar no seu céu, pode ser no seu inferno / Viver a divina comédia humana onde nada é eterno".

É impossível falar sobre a música brasileira dos anos 70 sem passar por Belchior. Foram muitos os seus sucessos e, entre eles, um que falava sobre seu "Medo de Avião". O que pouca gente sabe é existe uma segunda parte desta canção, composta em parceria com Gilberto Gil: "Medo de Avião II". Ao lado do baiano, esse medo se tornou mais simples.

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Nos anos 80 e 90, Belchior seguiu compondo e chegou até mesmo a abrir uma gravadora. Mas, cada vez mais esquecido, acumulou problemas, processos e dívidas, morando em hotéis, casas de amigos e abrigos. Até que no "Fantástico" de 23 de agosto de 2009, a Rede Globo anunciou um suposto desaparecimento do cantor. Relembre:

No domingo seguinte, 30 de agosto de 2009, a repórter Sônia Bridi foi atrás do cantor e o encontrou exilado no Uruguai, onde concedeu uma entrevista explicando seu suposto desaparecimento:

Em 2012 ele novamente desapareceu, juntamente com a esposa Edna, de um hotel 4 estrelas na cidade de Artigas, no Uruguai. Deixou para trás uma dívida de diárias, além de objetos pessoais. Mas, passeando em Porto Alegre, foi identificado e afirmou que as notícias sobre a dívida no Uruguai não seriam verdadeiras.

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Até que em 30 de abril de 2017, aos 70 anos, Belchior morreu na cidade de Santa Cruz do Sul (RS) em razão de uma ruptura de um aneurisma da aorta. Sua obra foi então redescoberta por toda uma geração, como o Rapper Emicida que regravou "Sujeito de Sorte" com as participações de Majur e Pablo Vittar em 2019.

Belchior virou nome de bloco carnavalesco em Belo Horizonte, seu rosto passou a se tornar um ícone e seus versos estampam muros, ilustrações virtuais, camisetas e até tatuagens. Aquele homem que antigamente chegou a ser considerado um bigodudo de voz fanha virou até símbolo sexual.

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Em vida, Belchior não tinha uma boa relação com a fama e com o estrelismo. Ele era um homem complexo, sensível e, talvez, tenha estado à frente de seu tempo. Hoje, ele é mais festejado pelo público jovem até mesmo do que quando surgiu com grande estouro. Em sua obra ainda há muito o que ser (re)descoberto. Porque, afinal, "quem viu, na vida, novidade em estar vivo?". Obrigado, "Até Mais Ver", Belchior!

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