Violência sexual mascarada de literatura erótica

O que mais temos são antologias de literatura dita erótica com o puro suco da misoginia. Que erotismo é esse?

BuzzShe

O pensamento feminista demorou para se fazer presente em minha vida, mas bastou que eu me aproximasse minimamente dele e simplesmente já não era mais possível ver o mundo da mesma maneira que antes. Os primeiros contatos ocorreram em fins de 2012, quando, um ano e pouco antes da minha transição oficial, fui apresentada a uma de suas vertentes por uma grande amiga. A partir daí, mergulhei de cabeça na aventura de entender mais dos debates de gênero e isso foi afetando todas as esferas da minha vida.

Uma situação em que isso se mostrou visível deu-se em 2015, numa palestra com um dos professores mais brilhantes que conheci. O trecho a seguir, sobre a dita palestra, é um texto que publiquei à época nas redes sociais, abordando a necessidade de construirmos uma crítica literária que esteja antenada com os debates feministas. Talvez eu tenha cometido alguns exageros, reconheço, mas continuo gostando bastante do que ele diz. Acredito, aliás, que ele seja uma ótima introdução para o curso que darei a partir da semana que vem, nas próximas quatro terças, no portal "A Escrevedeira": "Representação da Violência Sexual na Literatura de Língua Portuguesa".

DE POESIA ERÓTICA, ESTUPRO E ACADÊMICOS

Um erudito veio hoje à Unicamp falar do poeta Manuel Maria du Bocage, deleitar a plateia com os poemas "desbocados" do tal poeta, poemas que iam desde o tipo "malicioso", "ambíguo", até o mais "obsceno", "satírico", passando ainda pelo "libertino". Exemplificou os três modelos chegando inclusive a usar palavras como "racista" e "homofóbico" (lógico que adicionando a nota explicativa do "veja bem, Bocage não é nem mais nem menos racista doq sua época, então esses apodos não são de grande valia aqui: ele deve ser julgado pensando-se nisso"), mas "misógino" ou "machista" não pintou uma única vez. Criticou por fim o povo que pensava que Bocage, por falar "palavrão", era um libertário ou questionador dos costumes, já que uma análise mais detida de sua obra revelaria, na verdade, uma pessoa determinada a reforçar as normas de sua época.

Perguntei a ele, então, se o fato dos poemas sobreviverem à própria época e poderem ser lidos diversamente por outras plateias não faria necessário que os lêssemos também com os olhos do presente, já que alguns dos poemas lidos pelo tal erudito ali na palestra estavam hoje, por exemplo, sendo recolhidos em antologias de poesia dita erótica, poemas que muitas vezes falavam de estupro inclusive (e, duma perspectiva feminista, estupro jamais entraria pro rol de experiências reconhecidas como eróticas). Falei também que eu não estava interessada em ver Bocage nem como libertário nem como "rei dos brejeiros" (título da palestra), uma vez que seus poemas destilavam misoginia da cabeça aos pés, ou seja, que eu estava mais interessada em lê-lo antes de qualquer coisa como misógino.

Lá vem o sabichão cheio de não-me-toques, falando que, "com o advento do politicamente correto", qualquer coisa poderia ser enquadrada como "misógina", dizendo que todo o séc. XVIII também o seria então e que não haveria como se furtar a isso, e aí a crítica não fazia sentido, assim como não fazia sentido apresentá-lo como particularmente misógino em face a seus iguais. Por fim, afirmou que nenhum dos poemas que ele havia lido falava de estupro. Nesse momento, eu intervim novamente e lembrei-lhe desse aqui que ele, encenando jocosamente a cena, acabara de ler (trata-se do relato em primeira pessoa duma jovem, Alzira, perdendo a virgindade na noite de núpcias com Alcino — entre colchetes deixei sinônimos mais conhecidos de palavras possivelmente estranhas que o poeta usou):


"Então lancei curiosa ávidas vistas

sobre ignôtas feições: fiquei pasmada [desconhecidas]

ao ver do sexo as distintivas formas

da maior extensão: dobrou meu susto,

mòrmente quando, desviando Alcino [especialmente]

meus pés unidos, entre meus joelhos

seus joelhos cravou, e com seus dedos

procurou dividir da estreita fenda

pequenos fechos, sobre os quais, de chofre, [de súbito]

assestou o canhão, que me assustava.

Ao medo sucedeu uma dor viva,

como se agudo ferro me cravasse...

Alcino impetuoso ia rompendo

a tênue fenda... em vão, com mil gemidos

em pranto debulhada, eu lhe pedia

que não continuasse a atormentar-me:

o cruel, minhas lágrimas bebendo,

com a boca colada sobre a minha,

respirando com ânsia, e furibundo, [furioso]

meus gritos abafava, me rasgava"

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O erudito indignou-se frente à possibilidade de ver nisso estupro, já que era a noite de núpcias do casal e, ao final, a mulher veio a descobrir enorme prazer com a experiência sexual, recomendando-a à amiga. Na opinião do erudito, o fato de a mulher resistir à "investida" do marido, que agia como quem "conquistava um território" (veja-se, p.ex., quando ele abre à força as pernas dela e crava o joelho entre os dela para não deixar que ela as tornasse a fechar), não significava que aquilo era um estupro: era, isso sim, um recurso necessário ao gênero erótico pra dar a entender que a mulher era pudica, que ela não quis, que ela teve que ser forçada para se permitir conhecer o prazer (uma mulher que não resistisse, que se atirasse súbita em direção à cópula, seria vista como uma desavergonhada para os padrões da época).

Oras, o que não se pode perder de vista, no entanto, é o fato de o texto, ainda que se propondo a fazer o relato da perspectiva da mulher, ter sido escrito por um homem. Nesse sentido, existir ali uma mulher que diga "não" e um homem interpretando esse "não" como "sim", como puro cu-docismo, existir um desfecho onde essa interpretação se sacramente e mostre o quão bom foi o homem ter desconsiderado esses gritos, esses choros, esses medos, essas resistências e consumado a cópula (tudo isso escrito por um homem, não se esqueçam), isso me parece perigoso. Poemas desse tipo estarem sendo antologiados, hoje, dentro duma ideia de poesia "erótica", isso me parece perigoso também: que ideia de sexo fazem as pessoas que se permitem antologiar um poema desses como erótico ou poemas ainda mais descaradamente violentos? Parece-me ainda mais perigoso quando as pessoas que se supõem, e que supomos, a nata do saber julgam críticas desse teor como "moralismo barato", "ditadura do politicamente correto".

Tem coisas que só se percebe quando você vive em função do medo de ser estuprada, seja no trabalho, seja no caminho de volta pra casa, seja em qualquer lugar onde você esteja. Quem desconhece o medo da violência sexual talvez seja incapaz, inclusive, de perceber o quanto estupro é experiência cotidiana na vida de todo tipo de mulher aqui no Brasil.

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