Um presidente homofóbico é sintoma de uma sociedade doente

Mais uma vez Bolsonaro alimentou LGBTfobia; mais uma vez ninguém pareceu se incomodar na medida que a situação exige

"Num evento, estava o Lula, a Dilma, o Haddad atrás, Celso Amorim, e dois homens se beijando. Mas de língua, parecia aqueles casais apaixonados do Titanic, né. Uma coisa inacreditável. (...) Aquela cena, um presidente da República sorrindo, de deboche, como se fosse a coisa mais linda do mundo. Cada um vai ser feliz como bem entender entre quatro paredes na sua intimidade aí. Agora, publicamente?"

O quão absurda essa fala soa em pleno ano de 2021? Pois tenho certeza que ela vai parecer menos absurda quando eu disser que ela foi proferida pelo Bolsonaro. "Aaah, claro. Tá explicado". Bolsonaro falou que o afeto LGBTQIA+ deve ser mantido longe dos olhos cis-heterovigilantes após uma reunião por videoconferência com ministros do TCU, na manhã do dia 27/4. E, vindo dele, não choca ninguém - a gente já está acostumado. E isso é muito perigoso.

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Mais do que a imposição, a forma mais fácil de perpetuar a violência é através da naturalização dela. Quando a violência é imposta, há o conhecimento e a percepção coletiva de que ela está acontecendo. Quando ela é naturalizada, não: a violência acontece na nossa frente e ninguém a encara nos olhos. E se alguém aponta pra ela, o resto das pessoas trata como algo banal porque se acostumou a ver a violência acontecendo. O que Bolsonaro tem feito repetidamente, ao longo de toda sua trajetória política, é naturalizar a violência LGBTfóbica.

Existe uma dificuldade coletiva muito grande de entender o que é violência além do óbvio - e mesmo a óbvia, muitas vezes, é relativizada. Ou você nunca ouviu alguém argumentando que outra pessoa sofreu determinada violência porque "mereceu"? Ou porque "estava pedindo"? Relativizar atos agressivos, na esfera física e psicológica, é um indício de que somos frutos de uma sociedade onde a violência acontece de forma tão recorrente que não é mais um evento isolado, é a regra. Aceitamos a violência porque estamos acostumados com ela.

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Se fosse diferente, Bolsonaro não teria sido eleito sequer vereador, lá atrás. São inúmeros os exemplos de declarações onde ele estimula, direta e indiretamente a violência contra pessoas LGBTQIA+ ("Se o filho começa a ficar assim, meio gayzinho, [ele] leva um couro e muda o comportamento dele"). E, mesmo assim, ele foi eleito porque a população está acostumada a ver essa parcela da sociedade ser violentada a ponto de sequer enxergar essa violência por mais óbvia que ela seja - porque, sim, ela é óbvia. 

Se pessoas trans tem a expectativa de vida na casa dos 35 anos, a violência LGBTfóbica é óbvia. Se os índices de transtornos psicológicos são expressivamente mais altos em pessoas LGBTQIA+ do que em pessoas cis-hetero, ela é óbvia. Se existe a necessidade de uma lei que reforce que violentar pessoas LGBTQIA+ é crime, ela é óbvia. Se o presidente da República, eleito por milhões de pessoas, diz que, ao contrário do afeto heterossexual, o afeto LGBTQIA+ deve ser publicamente condenável, ela é óbvia

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Tratar algo tão simples como um beijo como algo repulsivo e, na sequência, sugerir que esse tipo de afeto só se manifeste em sigilo por ser algo que beira o hediondo pode ter consequências catastróficas em uma sociedade onde os agentes destes beijos já são atacados. Enquanto uma parcela da população trabalha para desconstruir a violência contra alguns, porque isso deveria ser o processo natural civilizatório, Bolsonaro prega a barbárie e alimenta o comportamento animalesco em quem age motivado pelo ódio.

Naturalizar que um presidente da República - ainda que esse presidente seja o Bolsonaro - diga coisas que sustentam a violência é inadmissível. Não podemos nos acostumar, porque é aqui que perdemos o controle no combate a ela; falas como as do Bolsonaro não deveriam passar batido, pelo contrário, deveriam ser suficientes para gerar revolta coletiva. Parafraseando o próprio, com a licença poética de colocar os elementos em seus devidos lugares, LGBTfobia já seria uma coisa pavorosa acontecendo dentro de casa, entre quatro paredes. Agora, publicamente? 

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