Sexo, HIV e transfobia num poema meu de 2005

Reflexões iniciais sobre o papel do HIV na vida de travestis, partindo de poema controverso que escrevi.

Um dos poemas que mais gosto, do meu livretinho "Neca + 20 Poemetos Travessos" (editora O Sexo da Palavra, 2021), é também o mais antigo de todos os publicados e o mais controverso. Relutei em publicá-lo, mas acabei cedendo após redigir uma extensa nota de rodapé em que o contextualizava.

Eis o poema e a nota:

regozijazigo*

pai de [tamanho] família,

pau pequeno, apalpa a neca

da travesti que secreta-

mente inveja a alegria

com que ele se presta à cilha:

qual cona, o cu se abre assaz,

tesa, a trava se compraz

e enfia ainda mais mas come-a

sem fome e a chama de fêmea

e goza — o vírus verás.

* Datado de 2005, esse é o primeiro dos meus poemas sobre a realidade travesti. O ódio que senti ao me dar conta do alcance brutal da transfobia me levou a escrever um poema em que eu imaginava, como revide, a travesti transmitindo HIV para um cliente (ou, uma vez que a palavra gozar tem duplo sentido, aterrorizando-o com a possibilidade da transmissão, "continua assim e você vai acabar contraindo o vírus"). Pode-se pensar que essa saída é transfóbica e sorofóbica, por reforçar estereótipos, mas não tem bonzinho ou mauzinho nessa história: os envolvidos são adultos o suficiente para decidir se vão ou não usar camisinha, certo?

O título é um trocadilho entre "regozijar-se" (alegrar-se) e "jazigo" (sepultura), o que fazia pleno sentido num momento em que o diagnóstico de HIV ainda era sentido como uma sentença de morte. Mas de 2005 para cá muita coisa mudou, os medicamentos se desenvolveram, chegaram também a PEP e a PrEP, sem contar o ativismo de pessoas posithivas, que começou a ganhar bastante visibilidade, questionando radicalmente a maneira como o HIV e a Aids são discutidos pela mídia, pela medicina, pelo Estado e, inclusive, pelos demais movimentos sociais. Tudo isso afeta consideravelmente os sentidos que o meu poeminha é capaz de produzir hoje.

De qualquer forma, ele é parte da minha história. Registro da indignação que me tomou diante da transfobia a que a comunidade travesti estava e, em certa medida, ainda está sujeita (as dificuldades materiais enfrentadas por uma travesti depois de se assumir, as portas fechadas, o ódio e a violência cotidianos e gratuitos, as exclusões, as preterições amorosas, a solidão), é sintomático que o revide que consegui imaginar, à época, fosse esse.

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Não foi à toa que ele me ocorreu, aliás. Lembro de ter escrito o poema após ler uma notícia que dizia que 50% das travestis que exerciam a prostituição em São Paulo estavam com HIV. Cinquenta por cento, metade, de cada duas uma. Difícil imaginar outro grupo, no Brasil, que chegasse perto desse percentual. Eu não era uma pessoa muito chegada a militâncias, ativismos, não tinha formação política nenhuma, mas a admiração e o amor que eu nutria por aquelas figuras tão belas, tão destemidas (admiração e amor que certamente eram fruto de um desejo de transicionar, desejo que naquele momento eu não conseguia reconhecer nem para mim mesma) me levava a acreditar que essa situação não era culpa delas, era, isso sim, mais uma violência que a sociedade cometia contra elas.

E, se a sociedade as havia violentado assim, nada mais justo do que isso se voltar contra ela mesma, única maneira de essa sociedade hipócrita reconhecer que há um problema e que a responsabilidade por solucioná-lo é coletiva. Enquanto estavam morrendo só travestis e homens gays, parecia que isso era um problema nosso, castigo divino por sermos quem somos, essa percepção só mudando quando pais de família passaram a contrair HIV e a transmiti-lo para suas companheiras.

E eis precisamente o momento em que o Estado decidiu começar um diálogo com a comunidade LGBTQIA+. Não fosse o HIV e talvez ele estaria, ainda hoje, fazendo a egípcia diante de toda a LGBTfobia que nos flagela. Hora de começar a falar sobre a importância que o HIV teve para o reconhecimento do nosso direito de existir, aquilo que muites estudioses chamam de "sidadanização".

OBS: o poema é bastante confuso, mesclando o bajubá das ruas, que eu tinha acabado de conhecer, com construções meio pedantes do português erudito. "Prestar-se à cilha" era pra significar "deixar-se cavalgar" (cilha é uma cinta de couro usada para prender a sela em cavalgaduras); "cona" é "vagina" (não a forma abreviada de maricona); "assaz" é "muito". Percebam, além disso, que o gênero da maricona muda quando ela se deixa cavalgar ("come-a / sem fome e a chama de fêmea"), numa confusão bem típica da cultura travesti.

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