Quem diz que negros no Brasil não se revoltam precisa saber essas coisas

Existe muito mais além do que a branquitude enxerga.

Desde o assassinato de George Floyd (25 de maio, em Minneapolis, USA) a hashtag #BlackLivesMatter voltou a se espalhar pelas redes sociais ao redor do mundo. Estamos acompanhando grandes e violentos protestos varrerem as cidades americanas, trazendo a tona um debate gigantesco: o genocídio do povo preto.

Atrelado a este debate também vimos surgir um questionamento sobre uma suposta inércia dos pretos e pretas do Brasil. Perguntas como "Por que os negros do Brasil não se revoltam como os negros noa EUA?" rolaram soltas nos últimos dias.

Vamos trazer agora alguns informações pra gente poder ampliar esse debate e entender um pouco dessas conjunturas, que sim, são complexas. Não se sinta mal de não estar entendendo nada.

Todas as fotografias que ilustram esse post são do fotógrafo documental Júlio César.

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Manifestação de pessoas pretas sempre foram estigmatizadas.

Antes mesmo de falar sobre manifestações, podemos afirmar sem medo que há tempos no Brasil a aglomeração de pessoas pretas causa estranhamento nas pessoas brancas. Trago um pequeno exemplo neste vídeo que, apesar de ser dos anos 1970, continua atual. Agora, quando falamos de uma aglomeração com reivindicações políticas, este estranhamento toma outra proporção. São vistas como arruaça, ataque à ordem, barbárie.

Acusações que dizem que os negros brasileiros não se revoltam precisam ser revistas.

Protesto sobre a morte de Pedro Gonzaga, morto em 14 de fevereiro de 2019 asfixiado por um segurança do mercado Extra.
Protesto sobre a morte de Pedro Gonzaga, morto em 14 de fevereiro de 2019 asfixiado por um segurança do mercado Extra.

Júlio César Almeida

Esse tipo de acusação pode ser associada facilmente às pessoas que não acompanham o desenrolar das questões raciais no Brasil. Afinal, dizer que no lugar onde existe uma das maiores comunidades de pessoas pretas do mundo nada é feito é um erro grotesco. As cotas raciais nas universidades públicas, a valorização da estética preta e a pressão para contratação de mais negras e negros pelo mercado de trabalho são consequência da movimentação dos movimentos negros brasileiros. Sem falar na injustiça que existe na comparação entre Brasil e EUA. As operações dos racismos norte-americano e brasileiros são muito diferentes. Enquanto lá aconteceu uma política de separação das raças, inclusive explicitada em leis, aqui sofremos um processo de embranquecimento populacional, que visava acabar com a negritude brasileira. Consequência desta prática é a pigmentocracia, ou colorismo, que estabelece uma hierarquia racial entre pessoas pretas mais retintas e menos retintas.

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Letalidade Policial.

Perfomance protesto na manifestação pela morte de  Pedro Gonzaga, morto em 14 de fevereiro de 2019 asfixiado por um segurança do mercado Extra.
Perfomance protesto na manifestação pela morte de  Pedro Gonzaga, morto em 14 de fevereiro de 2019 asfixiado por um segurança do mercado Extra.

Júlio César Almeida

É preciso levar em consideração que a polícia brasileira, que é o braço armado dos estados, é uma das mais letais do mundo. Estudos mostraram que no Brasil a polícia mata cinco vezes mais do que a polícia americana.

Ou seja, nós negros já somos "alvos naturais", dada a construção da nossa imagem coletiva como bandidos e suspeitos, portanto num contexto de confronto numa manifestação ficamos ainda mais vulneráveis.

Nesses artigos da Super Interessante e do Jornal Nexo temos informações adicionais sobre este tema em específico, e no Monitor da Violência conseguimos ver os dados de forma mais completa.

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O histórico de articulações não é pequeno.

Manifestação pela morte de Luciano Macedo e Evaldo Rosa, mortos num carro alvejado por militares com 80 tiros.
Manifestação pela morte de Luciano Macedo e Evaldo Rosa, mortos num carro alvejado por militares com 80 tiros.

Júlio César Almeira

Não podemos invisibilizar mais o longo e exaustivo caminho da luta racial no Brasil.

Sem me esforçar muito, consigo citar desde a Revolta dos Malês e Revolta dos Palmares, passando pelas enormes manifestações que aconteceram por conta do sumiço de Amarildo Dias de Sousa (#cadeoamarildo), da morte de Cláudia Ferreira (que foi baleada e depois arrastada ao longo de 350 metros por uma viatura), da morte de Marielle Franco (deputada que teve seu carro alvejado por balas no Rio de Janeiro), da morte de Evaldo Rosa e Luciano Macedo (mortos alvos de 80 tiros de fuzil contra o carro no qual se encontravam), da prisão de Rafael Braga (preso nas manifestações portando um desinfetante) e da prisão de Renan da Penha (que passava informações sobre os caminhões da polícia que subiam os morros e costumavam agir de forma truculenta com a comunidade local).

Não é porque os brancos não se enxergam que não existe luta.

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Sobrecarga por lidar com a violência policial e pandemia num país sem plano de contenção ao mesmo tempo.

Manifestação pela tortura sofrida por um adolescente que foi chicoteado por seguranças numa unidade do mercado Ricoy
Manifestação pela tortura sofrida por um adolescente que foi chicoteado por seguranças numa unidade do mercado Ricoy

Júlio César Almeida

Não é justo exigir de pretas e pretos de país, que atualmente é o epicentro mundial da pandemia de Covid-19 e que nem ministro da saúde tem, saiam às ruas para protestar contra a violência que sofrem.

Além dos riscos que qualquer confronto entre policiais e manifestantes podem trazer, a comunidade negra é a mais afetada pela doença devido às suas características sociais e econômicas.

Qualquer pessoa pode contrair coronavírus. Mas poucos possuem convênios médico, casas grandes com cômodos isolados, possibilidade de trabalhar de casa, etc. É sabido que pretos e pobres são os grandes atingidos pela crise sanitária e econômica que atravessamos no momento.

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O movimento negro não é uma coisa só.

Manifestação pela morte de Marielle Franco
Manifestação pela morte de Marielle Franco

Júlio César Almeida

Não existe uma grande instituição nacional denominada movimento negro. Um exemplo para deixar isso mais evidente: os movimentos feministas são plurais e possuem várias formas de atuação.

Assim também são os movimentos negros: plurais.

Tentar emplacar um substantivo ("movimento negro") é uma cobrança tão vazia quanto instaurar uma "guerra ao terror" ou "guerra às drogas". Assim como seu inimigo não existe, seu objeto de cobrança também não.

Existe muitas organizações que se reúnem em prol desta causa, como o MNU (Movimento Negro Unificado), Geledés Instituto da Mulher Negra, Marcha das Mulheres Negras e por aí vai.

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Entendam: não estou falando que não devemos protestar ou ocupar as vias públicas. Sabemos da importância da disputa do território fora da esfera digital.

Estou adicionando as devidas camadas num debate que é muito mais complexo do que correntes no Instagram.

Procurem os movimentos negros, consumam conteúdo preto e ouça o que estamos dizendo.

Manifestação pela morte de Marielle Franco
Manifestação pela morte de Marielle Franco

Júlio César Almeida

E parem de nos matar. VIDAS NEGRAS IMPORTAM!

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