Preto pode ter o mesmo que você, caro amigo racista

É sempre bom lembrar, como diria o sambista Moacyr Luz: ‘Estranhou o quê?’.

Getty Images

É quase um ritual: antes de ligar a máquina de lavar, minha mãe tem que retirar todas as minhas calças ou bermudas, conferindo uma a uma os bolsos. O motivo? O perigo de ter acumuladas notas fiscais de produtos que comprei na rua, independente do valor. Da mais barata paçoca até um celular, passando por um saco de bisnaguinhas ou um conjunto para vestir. 

Guardo todas elas, as levando para onde for. De tão velhas, ficam amareladas em minha carteira. Antes de colocar os pés para fora de casa, confiro se todos os cupons fiscais das coisas estão comigo. Do contrário, não saio.

Reviro a casa de cabeça pra baixo, vasculho o lixo, pastas, mochilas, na busca dos papéis que comprovem que aquilo é meu. "Tira foto e guarde no celular", já ouvi de amigos (brancos, na maioria). Mas o que mal sabem é que o tempo que leva para desbloquear a tela, já posso ter levado socos, pontapés ou até um tiro, caso demore na busca da comprovação. Tenho medos. E confesso. 

Em 2018, realizei com os influenciadores AD Júnior e Spartakus, a partir de um texto do ator e diretor Rodrigo França, um manual em vídeo para sobrevivência de negros e negras, uma peça em estágio de alerta, e trazer consigo a nota era uma das dicas. "É uma loucura", "Seus exagerados", "Vitimistas", foram alguns dos comentários que recebemos.  

Mas nada ali era irreal, tudo o que era dito tinha motivo - e eu mais do que ninguém sabia, infelizmente. O vídeo viralizou, recebendo indicação ao Prêmio Faz Diferença de 2019, além de tornar-se peça permanente do Museu de Arte de São Paulo, o MASP.

Ainda que jornalista, não é isso que veem de primeira quando presente nos ambientes. As características que logo chamam atenção são as físicas: negro, alto, grande, um "perigo" à vida e aos objetos. Ao entrar numa loja, por exemplo, receio que algo apite com minha chegada ou saída. Para não haver dúvida, além do documento, tudo que tenho está com meu nome, como se fosse uma etiqueta a mais aferindo domínio.


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"Isso não é normal", você há de falar e eu concordo. Mas no país em que o meu corpo traça características que apontam desconfiança, essas são as ferramentas possíveis e que tenho à mão. Não minto: estar refém disso é aterrorizante. 

Nos últimos dias, um vídeo ganhou repercussão nas redes sociais: o caso de Matheus Nunes, jovem de 22 anos, instrutor de surfe e morador da Maré, no Rio de Janeiro. Enquanto aguardava a namorada, na porta do Shopping Leblon, foi interrogado por um casal de jovens brancos, tendo que provar ser dono de sua própria bicicleta. A jovem alegava ter tido a sua, que era semelhante, furtada nas proximidades.

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Eu juro que gostaria de escrever que este é um caso isolado, mas seria mentira. Basta passar o dia acompanhando tags e posts publicados e verão saltar aos olhos denúncias de racismo a partir dessa dinâmica. Se preto ou preta, "não pode andar bem vestido", "ter a bike da moda", aparelhos tecnológicos de "marca", tampouco andar nos bairros nobres de uma cidade. Quer dizer: só se for pra trabalhar e servir, nunca para lazer.

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Primeiro nos tornamos seres desumanizados, passíveis de morte. Depois, permitindo em determinado momento viver, conferem, dia após dia, o que podemos ter. São retratos de um racismo à brasileira, onde pessoas como eu não podem ascender ou ostentar, portando artigos "de luxo", frutos do árduo trabalho. Palavras, gestos, olhares, todas essas "sutilezas" que visam cercear direitos. 

Apesar do cenário, sempre de luto na luta, é preciso reiterar, caro amigo racista/preconceituoso: engula a ojeriza pela minha pele, seu receio do inusitado. Não precisa espremer a bolsa no corpo, mudar de calçada ou cadeira.  

É sempre bom lembrar, como diria o sambista Moacyr Luz: "Estranhou o quê? Preto pode ter o mesmo que você". 

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