Peça "Fracassadas BR", dirigida por duas travestis, tem equipe inteiramente LGBTI+

Diretoras questionam o que o padrão cisheteronormativo entende como fracasso.

Em uma sociedade cisheteronormativa, ou seja, onde o padrão é ser heterossexual (sentir atração por pessoas de outro gênero) e cisgênero (se identificar com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento), é de se esperar que tudo o que é construído nela e por ela também esteja ligado a esses padrões. 

Se a norma é ser cis e hétero, tudo o que é diferente disso é encarado como o desconhecido, o que dá medo e, com isso, é jogado para a margem. 

Uma vez na margem, as oportunidades são diferentes, os acessos são desiguais, as vivências são outras. Sem uma lógica que considere essa diversidade como padrão, os resultados também vão estar longe do que consideramos como sucesso. Se estar no padrão é imprescindível para ter sucesso, estar fora dele é passaporte carimbado para o fracasso. Ou, pelo menos, para o que o padrão entende como fracasso.

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Com essa ideia em mente, as diretoras Ave Terrena e Ymoirá Micall montaram a peça “Fracassadas BR”, cujo elenco e equipe criativa é formada inteiramente por pessoas LGBTI+. Ave e Ymoirá são travestis. 

Ave e Ymoirá. Foto: José de Holanda

O enredo é baseado em quatro elementos: o livro “A Arte Queer do Fracasso”, do autor Jack Halberstam, a cultura ballroom, o funk como arte, música e movimento, e as casas de acolhida para pessoas trans.

“Nós falamos sobre o fim do mundo, quando a noite deixa de existir, e todas as pessoas que foram condenadas à escuridão, ou que não tiveram outra alternativa a não ser viver na noite, precisam começar a viver na luz do sol. Então, elas começam a se transformar em monstros, que é o olhar da norma sobre a gente, o olhar de quem não nos conhece sobre o que é o nosso corpo”, conta Ymoirá. 

José de Holanda

Para fazer a montagem, elas consideram as experiências das pessoas que atuam na peça e sessões de conversa em dois centros de acolhida em São Paulo, a Casa Florescer 1, focada em travestis e mulheres transgênero, e a Casa Especial para Homens João Nery, voltada para homens trans e pessoas transmasculinas.

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“A gente fez todo um processo de vários encontros nas casas de acolhida para criar vínculos e pensarmos em conjunto. As pessoas assistiram a ensaios abertos, a gente apresentou algumas experimentações dentro das casas de acolhida e na estreia todo mundo estava lá. Várias pessoas das casas voltaram várias vezes na peça, então temos uma relação real criada, para que o teatro seja também um lugar de impulsionar a vida das pessoas e o reconhecimento delas como sujeitas, o que nos é negado muitas vezes como pessoas trans”, diz Ave. 

Ter uma peça encenada e criada apenas por pessoas LGBTI+ e dirigida por duas travestis é também uma forma de questionar esse padrão cisheteronormativo e tudo o que ele traz como conceito. 

José de Holanda

Durante os 70 minutos em que a arte acontece nos palcos (e todo o tempo após a peça, em que as reflexões são capazes de provocar mudanças), o padrão é criado por duas travestis e perpassa todas as suas vivências. 

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“Todos esses quatro eixos, de alguma forma, atravessam a existência das travestis que estão dirigindo a peça, mas, também, a das pessoas que estão envolvidas como um todo no projeto. Então, a peça já caminha para esse lugar também, ela se desenha a partir do que são essas existências tidas como fracassadas, que estão à margem, que são negligenciadas muitas vezes”, conta Ymoirá. 

“Como dramaturgas e diretoras, a peça tem muito da gente, porque estamos existindo em público como travestis que têm um trabalho no teatro, que estão reconhecidas não só pelo que a gente pode oferecer de satisfação do fetiche alheio, mas do que a gente pensa, do que a gente produz, do que a gente tem como produção intelectual e criação estética e artística, que deslocam o teatro e trazem as culturas LGBTI+ como um modo de produção e de fazer. A gente afirma isso através do nosso trabalho, do poder existir no dia, como dramaturgas, diretoras, professoras e não só como prostitutas, que é ainda o trabalho que a maior parte de nós tem como única alternativa. E a gente vai continuar repetindo isso até que se mude essa estatística, sem querer demonizar, nem criminalizar nenhuma profissão. Pelo contrário, lutando pela dignidade e pela segurança do trabalho, que é o que não existe hoje”, diz Ave. 

A peça está em sua segunda etapa em São Paulo. Entre os dias 21 a 30 de setembro, ela fica no Centro Cultural Arte em Construção, sede do Instituto Pombas Urbanas, em Cidade Tiradentes. Em outubro, de 12 a 29, será a vez do Teatro da USP, no Butantã. Os ingressos devem ser comprados na hora e funcionam no esquema de pague quanto você achar justo, com preço mínimo de R$ 2. 

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