Onde "The Handmaid’s Tale" errou

Dizer que a segunda temporada da série foi difícil de assistir seria um eufemismo. AVISO: Spoilers de toda a segunda temporada.

George Kraychyk / Hulu

Há seriados que são puro escapismo e há "The Handmaid’s Tale", uma série tão impregnada de desespero que fez com que parte de seus espectadores simplesmente desistissem de assistir. E não precisava ser assim. Sim, a série é inegavelmente perturbadora: ela se passa em um mundo onde mulheres são obrigadas a exercer funções extremamente limitadas, uma delas sendo a de aia, que força mulheres à servidão sexual com o objetivo de gerar filhos para homens poderosos. Mas a segunda temporada da série – livre das amarras de precisar adaptar o livro homônimo de Margaret Atwood ("O Conto da Aia", no Brasil) – poderia ter seguido o caminho de uma narrativa de resistência. Em vez disso, e na maior parte da temporada, ela apenas intensificou o sofrimento.

E esse foi apenas um dos erros cometido pela série em seu segundo ano. O seriado ainda apresentou momentos excelentes, graças a personagens completamente convincentes como June, Emily, Tia Lydia e Serena, além das performances espetaculares das atrizes que as interpretam, Elisabeth Moss, Alexis Bledel, Ann Dowd e Yvonne Strahovski. Contudo, "The Handmaid’s Tale" se tornou, no geral, uma espécie de martírio, travada por tramas sem objetivo e uma onda aparentemente infinita de sofrimento. Aqui estão alguns dos erros da série que deixaram o o público na mão – o texto, claro, está repleto de MUITOS SPOILERS da temporada inteira.

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Eterno retorno

George Kraychyk / Hulu

O maior problema de "The Handmaid’s Tale" – e algo que acaba criando outros problemas – é que a série parece ter medo de avançar na trama. A primeira temporada acabou, como no livro, com June sendo levada para um futuro incerto. Sem o material original para nortear a história, os roteiristas da série tiveram liberdade para levá-la por diversas direções. E apesar do suspense do final da primeira temporada ter sido resolvido rapidamente – June (Moss) fora levada como parte da repreensão sádica de Tia Lydia (Dowd) à revolta das aias –, o primeiro episódio da segunda temporada mostra June libertando-se de sua vida como Offred. Nick (Max Minghella) ajuda June a escapar da casa dos Waterford, e o episódio termina com ela queimando seu vestido de aia e arrancando o rastreador de sua orelha.

É um momento catártico de recuperação: agora ela é June e não mais Offred, um nome que a definia como propriedade de Fred (Joseph Fiennes). E então, dois episódios depois, ela é capturada pelos Guardiões. Em "Other Women", o quarto episódio da temporada, June volta a ser Offred. E mostra-se tão abatida pela terrível opressão de Gilead que aparenta estar totalmente conformada com seu destino. O retorno ao status quo é algo muito deprimente, além de frustrante, para o espectador – e é algo que acontece várias vezes ao longo da temporada. No 11º episódio, "Holly", June se esconde de Fred e Serena (Strahovski) e, sozinha, dá à luz seu bebê. No próximo episódio, os espectadores ficam sabendo que ela foi capturada e levada de volta à Gilead (algo que não é mostrado). E no mais frustrante exemplo da estagnação de "The Handmaid’s Tale", a temporada acaba com June quase escapando de Gilead com seu bebê – mas, no fim, ela dá o bebê para Emily (Bledel) e desiste de fugir.

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Desolação implacável

George Kraychyk / Hulu

Os roteiristas provavelmente têm algo planejado para June, possivelmente envolvendo ela começando uma revolução interna em Gilead. Essa é uma história válida e que merece ser contada, mas o problema com as constantes "quase" fugas de June é que elas contribuem para uma narrativa majoritariamente deprimente, onde a resistência a um regime opressor é reprimida repetidas vezes. "The Handmaid’s Tale" não é obrigada a dar esperanças – e seu retrato do quão difícil é derrotar uma sociedade patriarcal violenta não é distante da realidade –, mas essa foi uma temporada que tirou todo o prazer de assistir à série. Os momentos de otimismo são raríssimos. E eles geralmente são esmagados sob o peso da brutalidade que June e as outras aias têm de enfrentar.

A quantidade de violência – tanto física quanto psicológica – que o espectador tolera varia de pessoa para pessoa, mas o sofrimento da segunda temporada é particularmente irritante porque ele falha em avançar a trama. Peguemos, por exemplo, a mutilação da orelha de June no primeiro episódio da temporada. É uma cena extremamente gráfica (parabéns aos que conseguiram assistir sem desviar os olhos), mas ela funciona porque representa a determinação de June de escapar, custe o que custar, de Gilead. O fato dela ser jogada naquele mundo tão rápido outra vez diminui esse momento: sua dor não valeu de nada. É verdade que o sofrimento é endêmico a "The Handmaid’s Tale" – é algo intrínseco neste mundo –, mas sem um fio de esperança ao qual se agarrar, ele começa a parecer supérfluo. É uma série difícil de assistir, sim, mas qual é o objetivo disso?

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Quebra da lógica

George Kraychyk / Hulu

Outro resultado da série estagnar, e mais especificamente de sua relutância em alterar o status quo, é que isso acaba permitindo alguns furos de roteiro inacreditáveis. Ninguém representa melhor isso do que Emily, uma personagem a qual "The Handmaid’s Tale" não consegue superar, mas que não deveria mais estar na série. Apesar de Bledel ser uma das melhores atrizes do seriado, a série não deveria ter de sacrificar sua lógica para mantê-la por lá. Quando Emily fez sua saída triunfal na primeira temporada – e matando um Guardião, ainda por cima –, parecia que nunca mais a veríamos de novo. Mas não apenas ela sobreviveu até a segunda temporada como ainda conseguiu voltar para Gilead, graças a uma escassez de aias causada por um atentado suicida.

É difícil acreditar que uma mulher que já demonstrou tamanha rebeldia contra os valores de Gilead, o que culminou no assassinato de um Guardião, seria trazida de volta das Colônias para continuar servindo como aia. Ela é – e com razão – uma homicida perigosa e uma reconhecida ameaça ao regime! Quando ela esfaqueou Tia Lydia, ninguém ficou surpreso com isso (e ela consegue se safar dessa, porque de alguma maneira acabou confiada a um comandante solidário a seu sofrimento. A Emily da segunda temporada tem muita sorte).

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Desvios narrativos

George Kraychyk / Hulu

Como "The Handmaid’s Tale" vem se arrastando até a inevitável conclusão, a temporada teve de contar com uma quantidade razoável de encheção de linguiça. Por um lado, isso é um alívio – os espectadores precisavam de uma pausa na repetitiva história de June sendo esmagada pelo sistema. Infelizmente, a série não se saiu tão bem ao contar outras histórias. Sempre que a ação passa para o Canadá, "The Handmaid’s Tale" dá uma caída. Luke (O-T Fagbenle) nunca foi muito interessante mesmo – praticamente nenhum homem na série o é! –, e Moira (Samira Wiley) parece mais uma nota de rodapé nesta temporada. É decepcionante dado todo o potencial que ela demonstrou na primeira temporada. Um arco que explorasse seu transtorno de estresse pós-traumático poderia ser fascinante, porém, na maior parte do tempo, o seriado parece se esquecer de sua existência. E isso é particularmente lamentável porque Moira é uma das poucas personagens negras em uma série que parece determinada a ignorar intencionalmente a questão racial (mais sobre isso abaixo).

E temos também os flashbacks: durante a primeira temporada eles se mostraram importantes ao contar a história de como os EUA se transformaram no pesadelo machista em que nossas personagens se encontram. Os flashbacks da segunda temporada são vez ou outra reveladores – o de Emily em "Unwomen", o segundo episódio da temporada, é desolador e sinistramente atual, quando pensamos no clima político dos EUA de hoje –, porém, na maior parte do tempo, eles se mostram desnecessários. Sem mencionar o fato de que quanto mais "The Handmaid’s Tale" revela sobre o mundo pré-Gilead, mais a linha do tempo começa a não fazer sentido (veja acima, quebra da lógica). Ou talvez apenas queiramos acreditar que um país não se transformaria em um regime totalitário tão rapidamente.

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Romance equivocado

George Kraychyk / Hulu

Olha, uma coisa é Nick se apaixonar por June. E até faz sentido que ela comece a gostar dele e o procure quando quer consolo, uma escapada sexual ou distração. Mas a segunda temporada transforma Nick em um herói romântico, uma escolha confusa que demonstra que os roteiristas estão muito mais interessados no personagem do que o público. Evoluir a relação de June e Nick para uma espécie de história de amor proibida não parece certo – e não por algum tipo de fidelidade a Luke, pois, repetindo, os homens na série não têm muita importância. É mais porque isso parece precipitado e artificial, uma tentativa desajeitada de incluir romance em uma série em que não há muito espaço para isso. E apesar de Nick seguramente fazer o que pode para ajudar June, há algum tempo ele é conivente com o sistema e continua a se beneficiar disso. Isso faz com que seja bem difícil torcer para esse casal de jovenzinhos tresloucados.

E enquanto isso rola, Nick é forçado a se casar com uma criança, Eden (Sydney Sweeney). Ela é religiosa e dedicada a ele – apesar de Nick não querer nada com ela –, até se apaixonar subitamente por um Guardião chamado Isaac (Rohan Mead). Até poderia ser uma história interessante, mas é acontece tão rápido (e fora dos olhos dos espectadores) que é difícil que o espectador se sinta ligado a ela. Quando Eden e Isaac escolhem morrer um pelo outro, sua sofrida execução – eles são amarrados com correntes e jogados em uma piscina para morrerem afogados – parece apenas mais do mesmo sadismo de sempre de "The Handmaid’s Tale". Claro, é um momento de desenvolvimento para Serena, que fica horrorizada a ponto de permitir que June amamente seu bebê, mas Eden e Isaac (e seu romance) não foram suficientemente desenvolvidos para que as mortes causem real impacto.

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Ausência de interseccionalidade

George Kraychyk / Hulu

Após a primeira temporada de "The Handmaid’s Tale" ter sido alvo de críticas pelo modo como retratou a questão racial – ou, na verdade, sua incapacidade de analisar de alguma maneira a questão racial –, o showrunner da série, Bruce Miller, insistiu que a segunda temporada aprenderia com os erros. A ideia de Gilead como uma sociedade "pós-racial" nunca fez muito sentido, e apesar de a série não poder reverter isso, há diversas maneiras de pelo menos reconhecer a identidade racial de seus personagens não-brancos, ao mesmo tempo em que confere algum sentido na forma como a raça pode influenciar na rígida hierarquia deste mundo. Em vez disso, "The Handmaid’s Tale" não faz quase nada para explicar como o declínio dos EUA em uma distopia onde mulheres são subjugadas e o ser LGBTQ é proibido acabaria inesperadamente com o racismo e a ideia de raça. Não há respostas simples porque, repetindo, isso não faz sentido.

A única coisa que a segunda temporada faz é acrescentar mais atores negros – o que é admirável, mas não que contribuiu na abordagem do problema implícito. O seriado continua incapaz de considerar a questão racial. Tomemos, por exemplo, o flashback onde fomos apresentados à ex-mulher de Luke, Annie (Kelly Jenrette). Em nenhum momento há o reconhecimento das questões raciais existentes quando um homem negro troca sua mulher negra por uma mulher branca, o que fez com que a série fosse alvo de mais críticas. Este é um seriado sobre gênero – ele foi completamente desenvolvido em torno desse conceito –, mas até "The Handmaid’s Tale" aprender a tornar o seu feminismo em interseccional, a série continuará a dar mancada com seu público.

A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Flora Paul.

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