O racismo me fez otária?

Bianca DellaFancy fala sobre como o racismo já afetou seus relacionamentos.

O que de fato faz parte de você?

Prometo não tornar esse texto algo extremamente pessoal, mas preciso falar sobre afetividade.

Desde que me tornei solteira pela quarta vez, tenho pensado sobre o quanto me empenho em fazer meus relacionamentos darem certo. Tenho pensado sobre a trajetória de bichas como eu, e a dificuldade que enfrentamos em nossa trajetória romântica, afetiva e/ou sexual. Tenho pensado, também, sobre o que é dar certo.

Minha vida afetiva tem sido uma incógnita e diariamente me pergunto se é algo esperado pelos outros. Ora, sou um homossexual preto, afeminado que trabalha unicamente como drag queen. Embora muito bem sucedida, diga-se de passagem, certamente não me encaixo em muitas normalidades. 

Desde que me entendi como alguém “fora da curva”, tenho me encantado por semelhantes. Pessoas que, de alguma forma, não correspondem aos padrões projetados pela sociedade.

Ovelhas que fogem à regra do rebanho e buscam alimentar sua própria essência respeitando suas particularidades. Algo naturalmente interessante, ao meu ver.

Tenho colocado em prática meus próprios  conselhos, exercitado a comunicação e valorizado a rotina que os prazeres de um amor tranquilo nos proporciona. 

Insuficiente.

De modo geral, tenho aprendido muito com meus relacionamentos: revisito o passado e me policio pra não repetir falhas já cometidas, me empenho em ser acalento na vida do outro, abro mão da muralha que me circunda e me impede de acreditar a fim de que tudo dê certo.

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Pois bem, deu certo.

Mas não deu. Foi bom. Mas foi. Mais uma vez. Por que?

Essa seria uma boa reflexão. 

Infelizmente, o que normalmente paira em nossa mente fragilizada é mais parecido com: “o que foi que eu fiz?”. E depois de um tempo lidando com a cobrança, comecei a buscar a raiz desse sentimento. 

Pessoas pretas aprendem desde cedo a se protegerem de olhares que nos criminalizam. Aprendi a não entrar com a mão no bolso no supermercado pra não acharem que estamos escondendo algo, fechar a sacola ao entrar numa loja, evitar abrir a bolsa pra pegar o celular, manter-se sempre visível e acima de qualquer suspeita. Comprar qualquer coisa, ainda que não precise, só pra mostrar que não tinha intenções de roubar. Andar sempre arrumado e com RG pra “não morrer como indigente”. Fugir do que deveria representar segurança: a polícia.

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Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Todo esse compilado certamente deixa resquícios e comigo não seria diferente. Até hoje, aos 31 anos de idade, frequentemente me sinto atravessada pelo sentimento de que estou fazendo algo errado. Ainda que não esteja fazendo absolutamente nada, ou simplesmente colhendo os frutos do meu trabalho.

Obviamente isso interfere na forma como eu me relaciono afetivamente. Eu, por exemplo, nunca consegui “armar um barraco”. Mesmo nas situações mais cabíveis, como quando descobri que um dos meus ex-namorados brancos me traía copiosamente e sem proteção, eu me coloquei à disposição para conversar e explicar a importância da camisinha num relacionamento aberto. Acreditem: tenho outros exemplos, mas como disse, não quero tornar esse texto uma chuva de lamúrias pessoais.

O racismo me fez otária?

Fato é que raramente consegui reivindicar respeito da forma que deveria, pois sempre senti que estaria fazendo algo errado. Bater de frente com meus namorados, ainda que coberta de razão, sempre soou como entrar numa loja com as mãos no bolso e a culpa de um possível término sempre iria recair em cima de uma única pessoa: eu. 

Quando não, somos acometidas pelo medo da solidão. 

“Não te via no meu futuro.”

Esta foi uma das frases que ouvi em um término de relacionamento sadio e maduro, e me pergunto: o que é preciso ser ou fazer pra ser parte do futuro de outra pessoa? O que é preciso ser ou fazer pra não ser tratada de forma descartável por alguém que, até então, jurava reciprocidade?

Eu respondo: nada.

Não é justo medir nossa trajetória com a régua dessas pessoas. Não é justo atribuir uma culpa a si mesmo, porque isso só colabora com a manutenção de poder dentro e fora de um relacionamento. 

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O que de fato faz parte de você? 

Essa é a sua verdade. Só você sabe o quanto acreditou, aprendeu, se entregou e sentiu. Mesmo depois de ter passado por situações que tiraram o seu sossego, você está vivendo, contradizendo as expectativas das pessoas e do estado, e não tem nada mais gratificante que isso. O restante pertence ao outro, e ele que lide com um futuro sem você. 

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