O que se esconde por trás de nossas dores?
Insistir na superação dos padrões de gênero não quer dizer que precisamos ser mártires da causa trans.
Minha última coluna, "Vamos falar sobre bloqueadores de puberdade?", suscitou debates importantes mas, junto a eles, não poucos mal-estares e, bom, se já estava previsto eu continuar no tema por mais algum tempo, as respostas que recebi só me fizeram acreditar na importância de insistir na discussão. Já aviso, no entanto, que essas são reflexões minhas e que não tenho qualquer pretensão de impor minha maneira de pensar a ninguém.
Pode, inclusive, acontecer de essas reflexões causarem sofrimento a quem me leia, por tocar em pontos delicados das existências trans: se isso ocorrer em algum momento, peço desculpas desde já, definitivamente não era essa a intenção. Caso seja possível, me escreva e tentamos encontrar, pelo diálogo, um caminho mais adequado para o debate. No entanto, já deixo avisado que não deixarei de propor debates em função do sofrimento que meus textos possam vir a causar.
Por quê? Porque eu acredito no que estou dizendo e, além disso, porque acredito que nossos sofrimentos devam também ser ponto de partida para reflexão: suas origens, suas consequências em nossas vidas e nas vidas de quem nos rodeia, formas possíveis de lidar com eles, o que fazer para que nos afetem cada vez menos, etc. A dor é um sinal de alerta, mas o que esse alerta está nos dizendo não é sempre óbvio. Nunca é óbvio, ouso dizer.
Pensem, por exemplo, nas tantas vezes em que alguém foi transfóbique ou misógine ou racista e, ao se dar conta disso, começa a chorar compulsivamente, num desespero tão grande que até parece que a pessoa agredida foi ela e não a vítima. Pensem também nos episódios de ciúmes com que nos vamos acostumando desde cedo, as coisas mais tolas desencadeando o sofrimento mais atroz e esse sofrimento sendo usado como justificativa para o cerceamento de liberdades e direitos. Não é porque algo doeu que fomos atacades e, principalmente, não é porque está doendo que a razão da nossa dor é justa.
Numa das críticas que recebi, uma pessoa trans afirmou que eu fui irresponsável na maneira com que conduzi a discussão, pois promovi generalizações sobre o sentido que intervenções corporais assumem na comunidade trans. Outra pessoa disse que nem todo mundo recorre a tais intervenções para se aproximar de padrões hegemônicos e, sim, para se sentir mais confortável com o próprio corpo/gênero. Houve ainda uma pessoa que disse que gostaria de ter podido recorrer ao bloqueio de puberdade e que, atualmente, não pode fazer cirurgias em função do peso, razão de grande sofrimento seu.
Contudo, da minha perspectiva, todos esses depoimentos só reforçam a urgência do debate que iniciei na coluna anterior. Oras, só de existir gente que, em função do peso ou de alguma outra questão pessoal, não pode recorrer a cirurgias (tais quais a de redesignação sexual, a mastectomia, a colocação de próteses mamárias ou qualquer outra afim), isso já me parece razão mais do que suficiente para problematizarmos a associação imediata que se faz entre partes/formas do corpo e um gênero específico.
Fora isso, acho importante atentarmos para o fato de que "sentir-se confortável com o próprio corpo/gênero" tem relação direta com padrões. Os corpos que aprendemos a admirar desde cedo e os corpos que, desde cedo, são ensinados a sentir vergonha da própria existência: como sentir-se à vontade com o próprio corpo, após todos esses anos de dura aprendizagem? Posso estar propondo uma generalização aqui, mas acredito piamente que ela seja útil nesse debate.
Não, não é ok reforçarmos a ideia de que ter seios e/ou vagina é indicador de mulher e de que ter um peitoral chapado e/ou pênis é atributo masculino. Precisamos, sim, atacar, confrontar e tentar transformar esse tipo de compreensão. Pra ontem. No entanto, dadas as contradições da nossa sociedade, quanto mais você se afasta das noções hegemônicas de gênero, mais incompreensível fica a sua existência e mais difícil é você ter a sua própria humanidade reconhecida.
Quão frequentemente vão te apontar, te ameaçar, te agredir na rua, quão complicado será o estabelecimento de vínculos amorosos e de amizade, que tipo de tratamento você vai receber de seus familiares próximos desde a infância, quais as suas chances de obter um emprego? A resposta a essas perguntas pode ter relação direta com o quão próxime você está dos padrões hegemônicos de corpo e gênero.
Em face disso, não é raro que uma mesma pessoa defenda a superação dessas noções conservadoras de gênero e recorra a intervenções cirúrgicas e medicamentosas para se aproximar do padrão. Sobretudo agora que tais intervenções vão se tornando mais e mais acessíveis. Quanta porrada você está disposte a levar em nome das suas verdades, em nome de um mundo em que não estejamos tão reféns desses padrões?
Muites de nós só querem poder viver suas vidas em paz, sem grandes holofotes ou ações de heroísmo. E eu é que não vou criticá-las por tais escolhas. Mas não criticá-las não significa que não vou continuar insistindo na superação desses padrões que afetam tanto as nossas vidas. A minha, inclusive, pois eu não estou imune a essas contradições.