O beijo da travesti na televisão põe a normatividade em xeque. Que bom.

Linn da Quebrada deu umas bitocas em uma mulher cis no "BBB", e a transfobia aproveitou para dar as caras.

Eu fiquei tão felizinha ao ver, nas minhas redes, a repercussão positiva dos beijos que a Linn da Quebrada e a Maria deram no "BBB", que acabei acreditando que as coisas estavam mesmo mudando.

Reprodução/BBB

Doce ilusão, puro reflexo de algoritmos que nos colocam em contato apenas com gente que pensa igual a nós, nos fechando numa realidade paralela e tornando o diálogo com quem é de outras bolhas cada vez mais difícil.

Não, a repercussão daqueles beijos, bêbados, que começaram simbolicamente no Dia da Visibilidade Trans (29/01), não foi tão positiva quanto eu estava pensado.

Uma demonstração disso foi uma postagem de Daniela Andrade no Facebook, em que ela traz prints de comentários feitos em uma publicação que falava sobre o beijo das duas.

O que temos nesses comentários? Frases ironizando a feminilidade da Linn, interpretando o beijo como indício de que ela seria homem, afinal só homens beijam mulheres, não é mesmo? "Testosterona falando: Olá! Tô aqui ainda hein!!", disse um comentário, ao que outros responderam: "soldado ainda vive", "pensei o mesmo", "acordou o dormente kkkk". Chega a ser cômico o raciocínio, pois é como se o beijo de Linn numa mulher fosse uma reação espontânea desencadeada pela testosterona em seu corpo.

Bom, seria cômico se esse tipo de raciocínio tivesse ficado puramente no âmbito da piada e não orientado um sem-número de práticas médicas de "cura gay" e "cura trans"

O que não faltam são relatos de homens gays/bis e mulheres trans/travestis obrigades a receber injeções de testosterona como forma de "corrigir" seja a sua orientação sexual, seja a sua identidade de gênero, como se vê nessa passagem do livro "Meu corpo, minha prisão" (1985, p.46), da mulher trans Loris Ádreon:

"— Filho, sente-se aqui. O médico que lhe examinou disse que com medicamentos e hormônios vai fazer de você um verdadeiro homem. [...].

Mamãe Laércia trouxe-me um copo com água e duas pílulas bem pequeninas. Uma contrariedade enorme tomou conta de mim, pois eu não estava querendo ser um 'homem verdadeiro coisíssima nenhuma'. Não queria tomar remédio algum, principalmente sabendo que tal medicamento iria me condenar, ainda mais, a aparentar masculinidade e me identificar com um sexo do qual eu ansiava me libertar!"

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Mas os comentários sobre a Linn não pararam por aí. Um deles, feito aparentemente por uma mulher, foi ainda mais longe no absurdo: "Esclarecido!!!nasceu homem será sempre homem não adianta se fantasiar de mulher kkk". O curioso desse tipo de raciocínio é que, diante de um homem cis do qual se desconfia ser gay, vão dizer o oposto, "esse não gosta da fruta, não nasceu para ser homem", mas diante de uma mulher trans/travesti, ou seja, uma pessoa que reivindica formalmente a identidade feminina, vão tentar de todas as formas "provar" que ela é um homem.

A lógica seria a seguinte: afirmar que uma pessoa homossexual (ou suspeita de sê-lo) seria, na verdade, do gênero oposto, ainda que essa pessoa não manifeste nenhuma questão em relação ao próprio gênero, e, no caso de uma pessoa que expressamente se reivindique trans/travesti, aí dizer que ela nunca vai conseguir deixar de ser do gênero que lhe atribuíram ao nascimento. Heterocisnormatividade na veia e nem confiança pras contradições!

No entanto, importante perceber aonde semelhantes argumentos querem chegar, o que fica manifesto por uma outra classe de comentários também compilados por Daniela Andrade. Refiro-me àqueles que, diante desse beijo, não se contentam apenas em dizer que Linn estaria se passando pelo que não é, mas também representaria um perigo para as "verdadeiras" mulheres. O que se vê em comentários como "O linn tá mais camuflado que o lobo na pele de cordeiro kkkkkk" ou, ainda, "Depois querem usar banheiro público feminino" ou, então, "Ele é aquele que briga pelo direito de usar o banheiro com sua filha ou esposa".

A lógica dos espaços segregados por gênero é reunir, neles, apenas figuras que não sintam atração entre si, mas, dado o fracasso da heterocisnormatividade em produzir tão somente pessoas cisgêneras heterossexuais, a própria existência de pessoas LGBTQIA+ acaba colocando em xeque o sentido dessa segregação

Tal lógica, além disso, revela quem são as únicas pessoas que a sociedade precisa manter seguras, a salvo, e quem são aquelas que vão ser consideradas, a priori, ameaças. Nenhum desses comentários se pergunta como tornar os banheiros públicos seguros para pessoas trans/travestis, o que é só mais uma maneira de defender que não deveríamos sequer existir.

A normatividade buga diante de existências LGBTQIA+ e, bom, é melhor ela já ir se acostumando com esses bugs, porque estamos apenas no comecinho dessas transformações.

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