Meu abusador da infância está com Alzheimer

Mas eu lembro de tudo.

De uma coisa eu nunca esqueço: no dia em que ele ejaculou na minha mão e vi aquele líquido com aspecto perolado, pensei "parece xampu".

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Também não esqueço que ele, na frente de vários adultos, tinha o hábito de passar a mão na minha bunda e na de todos os meus primos e primas quando a gente andava pela sala, porque era "brincadeira".

Assim como não esqueço de ele deitar na rede comigo, na varanda, com todos bebendo na sala, e me mostrar algo duro, pedindo pra brincar com ele, como se fosse algo "divertido".

Não esqueço da dor que senti quando ele me levou pra um banheiro na área de serviço, tapou minha boca e fez o que tinha de ser feito. Voltei mancando para o quarto, enxuguei o choro e fui brincar com o filho dele.

Eu lembro de tudo isso. Ele não deve lembrar de mais nada. Há um tempo, conversando com minha mãe, descobri que meu abusador tem Alzheimer.

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Meus pais e parentes mais próximos não sabem de nada. Desconfiam. Mas nunca em detalhes. Provavelmente não fui o único. Não fui o único. Mas, ao saber que o homem que abusou de mim aos 8 anos tem Alzheimer, achei de uma grande injustiça - ou ironia do destino - que caiba a mim carregar sozinho essa história.

Não que eu esperasse por arrependimento ou perdão. Vamos chamá-lo do que ele realmente é: pedófilo. Eu esperava por culpa. Queria que ele levasse a culpa até o fim da vida. Assim como eu vou carregar essa marca até o fim da minha - junto com várias outras.

E eu sei, vai ter alguém perguntando a razão de eu nunca ter falado nada. Afinal, do que vale a palavra de uma criança, afeminada, considerada "errada", que cresceu no agreste pernambucano, numa época em que não se falava de diversidade? Eu digo: eu tinha certeza de que não valeria nada. Na minha cabeça, de alguma forma, a culpa seria minha.

Meus pais, claro, de nada sabiam. Nunca souberam.

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Essa memória veio à tona ao saber do Alzheimer, de seu direito ao esquecimento, mas também é reavivada de quando em quando, sempre que algum hipócrita finge se preocupar com a "segurança das crianças" ao ver LGBTs usarem banheiros e exercerem seu direito à fisiologia.

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Meu abusador era da família. Casado com uma parente muito próxima. Muitos filhos, de várias relações. Declaradamente heterossexual. Um tio querido aos olhos de todos. Alguém tão digno de confiança que passávamos dias de férias em seu apartamento (tinha piscina, quem não amaria?).

E esse padrão não é incomum. De acordo com números divulgados em 2019 pelo Disque 100, foram recebidas mais de 76,2 mil denúncias de violações de direitos de crianças e adolescentes. 7 em cada 10 abusadores têm relação familiar e de proximidade com os pais das crianças. A grande maioria é homem.

Os dados da Ouvidoria Nacional do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) são ainda mais alarmantes: 90% dos casos de violência sexual são registrados em ambiente familiar, sendo que o maior índice de abusadores são os próprios familiares próximos.

Segundo a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, a cada 24 horas, 320 crianças e adolescentes são vítimas de abuso no Brasil.

Ou seja: se há uma real preocupação com o bem estar dos infantes, é preciso olhar dentro de casa antes. Sim, é difícil lidar com questões familiares, mas mudar o foco do problema para vilanizar minorias com base em suposições não é o melhor caminho.

Eu, como vítima de abuso, me sinto pessoalmente desrespeitado ao ver a questão sendo usada não pelo bem de todos, mas, sim, para replicar preconceitos. Se quiser proteger sua família, comece se protegendo dentro dela.

A cada vez que surgem assuntos como "banheiro", "trans nos esportes" ou políticos insinuam que homossexuais são pedófilos, espalhando desinformação, eu sou lembrado do que vivi. A cada dia, eu vou lembrar do que vivi. Nessa e em outras vezes.

E eu vou seguir lembrando.

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