Maurício abriu um tópico para responder todas as perguntas que você já quis fazer para um cego

Desde o que os cegos sonham ao que eles levam em conta para considerar uma pessoa atraente.

O Maurício Silva é um leitor que participa do nosso grupo no Facebook. Ele é cego e super gente boa. Depois de explicar em um tópico como ele faz para saber se está limpo depois de ir ao banheiro, o Maurício decidiu criar um tópico para esclarecer todas as dúvidas que o pessoal queria saber e nunca teve coragem de perguntar para um cego.

      

"Acho que a informação é o melhor meio de combater o preconceito. Amo responder a esse tipo de pergunta porque sinto que estou contribuindo pra minha própria comunidade e gosto de deixar as pessoas confortáveis então não tenham medo de perguntar. Se floppar, nunca nem vi."

Sim, esta foi a mensagem incrível do Maurício.

"Como cegos limpam a bunda?"

"Não sei os outros cegos, mas eu confio no meu tato, não somente o das mãos. Dá pra saber quando está tudo certo. Além disso, você não precisa olhar sua bunda pra saber que ela está limpa, eu acho. É tranquilo".

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"Você consegue andar sem aquela paradinha de guiar? Qual a diferença dela pro cão guia?"

"A bengala é muuuuuuito útil porque funciona como um olho. Dessa forma sei se algum obstáculo está à frente. O cão guia requer uma espera muito grande e burocrática, mas vale à pena pra quem quer. Eu não teria um agora porque ainda preciso dominar o uso da bengala melhor".

"Seu olfato ou audição é mais aguçado?"

"Meu tato e os outros sentidos funcionam bem, mas não acredito em compensação. Só acho que me adaptei ao que precisava me adaptar, inclusive é através do meu tato corporal que sei que me limpei corretamente".

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"Como você sabe que está acordado e não está sonhando?"

"Meus sonhos representam minha realidade distorcida, como os seus. Às vezes, eu tenho sonhos lúcidos, mas é porque estudo isso na psicologia e gosto dessas paradas. Conheço cegos que têm memória visual. Acho que acontece mais com o pessoal que perde a visão depois de um tempo. Eu não vejo nos sonhos porque não tenho memória visual, mas meu ex afirmava que via".

"Como você escolhe as suas roupas?"

Eu escolho roupas pelo tecido, dá pra saber quando uma roupa é social ou não se você repara bem nela e separa direitinho na hora de guardar. Eu tento sozinho, mas sempre tem alguém, geralmente minha mãe, pra dizer "essa roupa é social, de tal cor". Depois que eu sei onde cada uma está, fica mais fácil. Eu também não ligo muito pra roupas, na verdade. Ainda bem".

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"Como você se sente sem saber as cores?"

"Eu perdi a visão com um mês de idade, sou prematuro de seis meses. Na encubadora queimei minha retina e o nervo óptico por conta da luz. Apesar disso, sei dizer que vermelho é quente, por exemplo, mas não sei dizer como sei disso. É muito louco!"

"Você tem noção de claridade? Dá pra diferenciar um ambiente claro de um escuro?"

"Muitos cegos têm noção de claridade, enxergam vultos... Tudo depende do problema que a pessoa teve. Não é o meu caso".

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"Como você digitou essa postagem? Quais tipos de trabalho um cego pode exercer? Você trabalha com alguma coisa?"

"O software que eu uso se chama NVDA. É um leitor de telas gratuito que lê tudo o que está na tela como se fosse uma pessoa falando cada coisa que aparece. Agora ele está lendo cada letra que eu digito. A voz é robótica, tipo a do Google. Não trabalho no momento mas faço facul de psicologia usando essas mesmas ferramentas".

"Como foi e tem sido sua relação com seus professores? Como foi seu processo de aprendizagem na educação básica?"

"Eu sempre estudei em escola pública, sempre em algum lugar de Santa Catarina. Os livros didáticos eram impressos em braille pela FCEE, fundação catarinense de educação especial, que fica aqui em São José. Os professores nunca estiveram 100% preparados e eu era meio que excluído de matérias de exatas, principalmente quando envolvia gráficos.

Quando morava no meu país São Lourenço do Oeste, cidade pequena, tive o apoio de uma sala de recursos que atendia cegos na escola em que eu estudava. Você deve ter uma noção do que é isso.

Quando me mudei pra São José frequentei por algum tempo a ACIC, associação catarinense de integração do cego, mas logo voltei pra cidadezinha e quando voltei pra cá de novo já não dava pra frequentar porque fiquei muito ocupado.

Hoje faço facul e os professores ainda não estão 100% preparados mas me escutam de verdade e acreditam em mim. Só na facul eu aprendi a aprender de verdade".

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"O sistema do braille é muito complicado de se entender?"

"Eu não acho porque aprendi quando era muuuuito pequeno, na fase de alfabetização mesmo. São 6 pontos (bolinhas) por célula. Os pontos se dividem em duas linhas de 3 colunas, formando uma célula retangular com 1, 2 e 3 à esquerda e 4, 5 e 6 à direita. Esses números são a posição dos pontos, de cima pra baixo. Os caracteres são representados por um determinado número de pontos, em uma determinada posição. É incrível quantas combinações são possíveis".

"Você escreve à mão? Assina? Se sim, como é sua letra cursiva? Como você sabe que está escrevendo no lugar certo? Se não escreve, você vive o tempo todo com computador ou celular pra digitar?"

BuzzFeed Brasil - O Grupo / Reprodução

"Eu assino com letra cursiva. Aprendi na associação que frequentei por um tempo aqui. Tem uma régua com uma linha no centro delimitando o espaço onde eu posso assinar. É como se o meio dela fosse cortado e só ficassem suas extremidades. Pena que não tenho foto".

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"O "x" que as pessoas usam pra deixar as palavras sem gênero atrapalha mesmo?"

"Acho que atrapalha os cegos mais leigos ou os que não sabem como soletrar usando os programas de leitura, mas a mim particularmente não. São quase 10 anos de internet hahaha".

"Fazer o vestibular foi de boas?"

"Até que foi. A maioria das provas desse tipo disponibiliza opções como braille ou um ledor pra ler as questões pra você".

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"O termo 'cego' é ok ou ofensivo?"

"Não fico ofendido com 'cego' até porque nós nos denominamos assim. Não uso muito 'portador de deficiência' porque não estou portando nada, se fosse assim eu poderia deixar minha deficiência por aí. Atitudes preconceituosas sempre ofendem mais".

"Como você lida com dinheiro? Tipo saber o dinheiro que você tem e conferir o troco, por exemplo?"

"Tem apps para celular que identificam dinheiro com a câmera e tem cego que identifica pelo relevo mesmo, mas eu ainda estou aprendendo a fazer isso".

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"Você sente dificuldade em se relacionar de forma amorosa, as pessoas ainda têm muito preconceito com isso ou tem sido de boa pra você?"

"Acho que as pessoas têm um pouco de preconceito sim, mas minha maior dificuldade é achar alguém mesmo. Logo eu, que me considero tão receptivo, não tenho muita disposição pra ultrapassar a vida social para além da faculdade e alguns rolês. Então, meus problemas amorosos são iguais aos da maioria da população mesmo".

"Como é o processo de se sentir atraído ou não por alguém?"

"Me atraio pela voz e pelo que consigo perceber do porte da pessoa, sem querer ser superficial. Me atraio também pela história de vida. Eu tinha uma lista de coisas que achava atraentes em um cara e mandei pras minhas amigas, mas já perdi. Era um lance de brincadeira com coisas tipo tocar violão, ter pelos suficientes, gostar de cerveja, ser mais alto que eu, etc. Mas a sério, me atraio pelo que consigo absorver e observar da pessoa em todos os aspectos possíveis. Nada de especial. Espero ter ajudado mesmo assim".

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"Maurício, sendo cego e gay, e portanto fazendo parte de dois grupos que passam por preconceito social, você sente que a forma das pessoas de lidar com uma dessas suas características é afetada pela outra? Algo meio como 'ser cego ok, ser gay ok, mas cego e gay não pode'? Tem questões específicas sobre ter essas duas características?"

"Ser deficiente e ter sexualidade já não pode, né? O pessoal não entende como isso é possível e explicar sempre é constrangedor ou complexo. Então sim, sempre tem alguém perguntando se e como eu transo, como eu sei do que eu gosto. Acho até importante, inclusive respondi aqui algumas perguntas sobre sexualidade que foram muito bem feitas. Mas fora daqui o povo não sabe perguntar então é estranho. Espero ter te dado uma luz".

"Você vai ao cinema? Acompanha novelas e séries?"

Netflix

"Cinema eu não curto e novelas a facul não deixa porque estudo à noite. Só 'Carinha de Anjo', que posso ver no YouTube depois. Curto séries de comédia e devo ter maratonado 'Friends' e 'HIMYM' algumas vezes nesses anos. Assisto muito filme com audiodescrição, que é um recurso onde um narrador descreve as cenas entre as falas dos personagens".

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"Você cozinha?"

Masterchef / Divulgação

"Eu particularmente tenho alguma preguiça e uso mais o micro-ondas, de boa. Ele não tem botões, então colamos fita adesiva no botão de ligar e no botão de 1 minuto, que pra mim são suficientes pra gerenciar as coisas. Os eletrodomésticos poderiam ser mais acessíveis, mas vamos lidando. Tem casais de cegos totalmente independentes que fazem coisas incríveis. Espero ter ajudado".

"Em quais aspectos você precisa contar com a ajuda de outras pessoas?"

"Em muitos. Eu estou aqui pregando a crença na independência dos cegos, mas cada um tem sua criação e suas oportunidades. Apesar de termos muita coisa disponível, temos nossas falhas de aprendizagem. Eu, por estar em cidade grande só há sete anos, ainda não tenho 100% de segurança ao andar sozinho na rua. No mais, se me ensinar a fazer e a gente ver que deu certo, é tranquilo.

P.S: Obviamente esqueci de alguma coisa em que preciso de ajuda, como outras pessoas. Atravessar a rua, saber onde fica o banheiro ou as bebidas em lugares desconhecidos ainda que pareça intuitivo para quem enxerga, etc".

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"Qual seu posicionamento a respeito de gente que sente pena e quer fazer as coisas para você?"

"São essas pessoas que enfurecem alguns colegas meus, que se revoltam de uma forma que eu não gosto muito e não têm mais paciência pra passar essas informações. Eu os entendo, é complicado. Ser subestimado, em qualquer situação, nunca é legal.

Acho que eu preciso das pessoas, sim, mas em uma relação de cumplicidade onde a ajuda é válida e mútua porque gosto de ajudar sempre que posso também.

Por fim, acho que não ter informação e ignorar a informação são coisas diferentes. Nesse caso, reclamo mesmo. Ninguém é de ferro, hahaha.

O que importa é que por enquanto está tranquilo conviver com essas pessoas".

A acessibilidade é uma preocupação do BuzzFeed e existe uma ferramenta em desenvolvimento para que o site possa ser lido por todo mundo.

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