Lauro só descobriu que a irmã vivia um relacionamento abusivo quando já era tarde demais

Vivendo no Japão, a família não pôde enxergar os sinais do risco corrido por Patrícia Koike, morta pelo namorado de anos em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro.

Era nove de abril de 2018, o primeiro dia de Lauro de volta ao trabalho em uma fábrica de soldas depois de se recuperar de uma crise de depressão sazonal no primeiro inverno após sua mudança para o Japão, quando ele ouviu uma mensagem estranha deixada por seu tio no celular.

"Liguei o celular na hora do almoço e tinha uma mensagem do meu tio. Ele perguntava se eu tinha contato com Altamiro, namorado da minha irmã Patrícia, e com a mãe dele. Eu não tinha. Meu tio contou que entraram em contato com ele nas redes sociais dizendo que a minha irmã estava internada em um hospital de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. A pessoa precisava do contato de algum parente e disse que o hospital não daria informações pelo telefone".

Foi assim que Lauro descobriu do outro lado do mundo que não estava tudo bem com sua irmã.

Patricia estava morta quando foi encontrada no carro de seu namorado em um posto de gasolina. Ele tentava convencer algum dos frentistas a levá-la a algum hospital da região e estava disposto a pagar 300 reais a algum deles por isso. Eles acharam a história muito estranha e chamaram a polícia. Ela tinha sido espancada, asfixiada e colocada ali, presa ao cinto de segurança, ao lado de seu assassino.


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Lauro Hideki / Acervo

Patrícia e Hideki na casa onde eles cresceram em Sorocaba.

Lauro Hideki / Acervo

Um dos espetáculos de balé de Patrícia quando ela era mais nova.

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Patrícia Mitie Koike foi criada com o irmão e a mãe em Sorocaba, interior de São Paulo. O pai vivia em Oizumi, uma província de Gunma a cerca de 100 quilômetros de Tóquio, no Japão, para onde ele se mudou desde que eles eram muito pequenos, para trabalhar e ajudar a família financeiramente. A mãe fazia o possível para esticar o orçamento e incentivar os incipientes talentos das crianças.

Patrícia fez natação desde pequenininha, balé por uns bons anos. Mas acabou abandonando essas atividades logo que a escola regular pareceu demandar mais sua atenção.

Ela era considerada uma ótima aluna, dedicada aos estudos e tudo isso por iniciativa própria. Lauro conta que ela tinha uma boa relação com os colegas e mesmo os atritos entre irmãos eram raros. "Nós dividíamos o computador, ela sempre me ajudava nos trabalhos de escola. As memórias que eu tenho de infância são sempre da gente muito unido".


"Dividíamos o computador, ela me ajudava nos trabalhos de escola. As memórias que eu tenho de infância são da gente muito unido"

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Reprodução / Facebook

Foto de Altamiro retirada de suas redes sociais.

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Em 2011, ela começou a estudar na ETEC Rubens de Faria e Souza e ficou lá até se formar no ensino médio. Lauro conta que mais ou menos nesta época a irmã começou a se distanciar dele, algo que na época ele achou até natural pela diferença de idade e por sua entrada na adolescência.

Mas tinha outra coisa: Patrícia começou a namorar Altamiro, um garoto de sua sala. A mãe de Lauro não aprovava muito o namoro, mas não falava sobre isso abertamente. "Era uma conversa mais entre minha mãe e eu", conta Lauro.

Lauro Hideki / Acervo

Patrícia com o uniforme da ETEC na casa da família em Sorocaba.

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Altamiro não era tão bom aluno quanto Patrícia e Lauro considera que ele e o cunhado nunca tiveram uma relação de verdade. Nas raras visitas à casa de Patrícia, Altamiro parecia não fazer muita questão de interagir com a família, e preferia ficar o tempo todo trancado no quarto apenas com a namorada.

E tinham as brigas. Apesar de Patrícia ser reservada quanto à sua vida sentimental, era perceptível que o casal brigava bastante. Mas a família não conseguia ter uma noção muito clara do teor dos conflitos. "Ela fechava a porta do quarto para que ninguém escutasse as conversas. Eles brigavam, em outro momento estavam bem, ficava difícil pra gente entender."

Lauro notava que, desde o início do namoro, a irmã parecia viver em permanente estado de alerta. "Ela estava sempre estressada. Como ele era de outra cidade, ela ficando indo de Sorocaba para Porto Feliz o tempo todo. Ela se sentia na obrigação de ir pra lá porque quando ela não ia eles brigavam".

"Eles brigavam, em outro momento estavam bem, ficava difícil pra gente entender".

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Sobrava pouco tempo para Patrícia cuidar de suas relações com os amigos e a família. "No Natal, a gente sempre se reunia na minha avó. Ela sempre ia, conversava com o pessoal. Mas depois de começar a namorar Altamiro, tinha Natal que ela passava em Porto Feliz", relembra.

Facebook / Reprodução

Altamiro, Patrícia e seus amigos da ETEC.

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Lauro Hideki / Acervo

Patrícia em sua formatura do ensino médio.

O sonho de Altamiro era ser médico. E este logo se transformou em um objetivo que era de Patrícia também. Ele imaginava que, assim como no colégio, Patrícia poderia ajudá-lo com os estudos. "Ela não vivia mais a vida dela, tudo o que ela fazia era para ele", avalia o irmão.

Em 2016, ao concluir o ensino médio, fazer alguns vestibulares e não passar, Patrícia começou a fazer cursinho. No ano seguinte, para ajudar nas despesas, ela começou a trabalhar na farmácia de um hospital de dia e seguiu estudando à noite.

"Minha mãe se lembra que ela voltava umas 22h30 e eles seguiam brigando madrugada adentro. Ela vivia exausta". "Foi uma das poucas vezes que Lauro testemunhou a mãe se posicionando abertamente contra o relacionamento. “Larga dele enquanto é tempo, você está se estressando muito, não está te fazendo bem", lembra.

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"Ela não vivia mais a vida dela, tudo o que ela fazia era para ele. Minha mãe disse: 'Larga dele enquanto é tempo, você está se estressando muito, não está te fazendo bem'".

Facebook / Reprodução

Patrícia provavelmente na casa de parentes de Altamiro.

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Patrícia parecia satisfeita no emprego e, não fosse pelo namorado, Lauro imagina que ela teria permanecido nele por mais tempo. Mas, certa vez, ele insistiu tanto para que ela o acompanhasse em uma viagem para Caraguatatuba que ela acabou indo mesmo sem conseguir uma folga. Patrícia acabou sendo demitida logo depois do episódio.

No ano seguinte, Altamiro foi aprovado no vestibular da Universidade de Nova Iguaçu (UNIG) e se mudou para a Baixada Fluminense. O relacionamento passou a enfrentar, além das brigas, uma distância ainda maior. Não demorou nem dois meses para que Patrícia desse um jeito de ir atrás dele.

Para a família, Patrícia continuaria fazendo cursinho, faria a mesma faculdade que Altamiro e eles achavam que o casal eventualmente até se casaria.

“Sinceramente foi natural, nós não recebemos a notícia que ela queria ir morar com ele de forma negativa. Eles já eram namorados há tanto tempo. E, minha mãe, mesmo com a mão no coração, permitiu que ela seguisse”. Havia também uma esperança de que as brigas diminuíssem. “Se o principal motivo das brigas era a distância, pra gente tudo bem se eles vivessem juntos”.


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Nesta época, Lauro enfrentava suas próprias questões. Ele tinha acabado de concluir o ensino médio, prestou alguns vestibulares, não passou, mas tinha uma outra ideia em mente: seguir o caminho de seu pai e ir trabalhar no Japão.

A mãe não pensava ir, mas ao perceber que ficaria longe dos filhos e sozinha em Sorocaba, ela achou que fosse contribuir mais se fosse para o Japão junto com Lauro. Lá ela poderia trabalhar e até ajudar Patrícia a pagar as mensalidades da faculdade futuramente.

A família começou a ir atrás da documentação e se preparar para esvaziar a casa. Poucos meses antes da mudança da família, Patrícia voltou a Sorocaba de carro, com Altamiro dirigindo, para pegar suas coisas. Seria a última vez que Lauro veria sua irmã pessoalmente.

"Eu achei que ela ainda viria novamente para se despedir da gente, mas ela deu a desculpa de que estava corrido, que o Altamiro não teria tempo de levá-la e a gente veio embora para o Japão sem se despedir".


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Depois da mudança para o Japão, o contato da família com Patrícia foi ficando cada vez mais esparso. Nas poucas mensagens que eles trocavam pelo WhatsApp, a família conversava com a filha sobre coisas do cotidiano. Nada que desse a mínima pista de que ela estivesse vivendo um relacionamento abusivo ou sendo vítima de violência doméstica.

"Ela se esforçava pra mostrar que estava tudo bem. Só respondia a gente por texto, raramente por vídeo e depois de um tempo acabou não fazendo mais. Segundo ela, os horários não estavam batendo".

Patrícia perguntava sobre os passeios, como estava sendo a adaptação, no que eles estavam trabalhando, mas alegava não ter muitas novidades pois sua rotina era basicamente fazer cursinho e estudar. A família também não queria atrapalhar os estudos da filha ou pressioná-la com muitas perguntas. Quando Lauro perguntava sobre a possibilidade de ela ir para o Japão, a irmã rapidamente desconversava.

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Depois da mensagem do tio, Lauro não conseguiu mais trabalhar em paz. Ele explicou a situação ao seu supervisor e foi embora para tentar descobrir o que realmente estava acontecendo com sua irmã. Neste ponto, ele não tinha a menor ideia de como iria contar para a mãe que existia a possibilidade de Patrícia estar no hospital. Não imaginava que teria que dar uma notícia ainda pior.

"Depois eu tive que contar pra minha mãe que minha irmã tinha morrido. Recebemos uma segunda ligação. Minha mãe atendeu e meu tio começou a narrar os acontecimentos. Aí minha mãe não conseguiu falar mais. Ela ficou caída no chão e passou o telefone pra mim. Nisso, ele falou pra mim que eu precisava ser forte e que minha irmã tinha falecido, e eu tive que contar isso para ela".

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Reprodução / Câmera de Segurança / Rede Record / Via noticias.r7.com

Imagens da câmera de segurança do posto de gasolina exibidas na Record.

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Segundo informações do Instituto Médico Legal (IML), a causa da morte de Patrícia foi asfixia. Ela teria sido espancada antes de morrer asfixiada. Foram encontrados diversos hematomas no pescoço, nas costas, nas pernas, nos braços e na cabeça. Algumas das lesões seriam recentes e outras antigas.

A polícia foi chamada depois que frentistas de um posto de gasolina de Nova Iguaçu suspeitaram que alguma coisa estava muito errada com a garota que Altamiro levava em seu carro, no banco do carona. Altamiro foi autuado em flagrante por homicídio e ocultação de cadáver.

As investigações apontam para a suspeita de que, antes da morte, Patrícia estava em cárcere privado por cerca de uma semana e, antes de colocá-la no carro, Altamiro teria lavado seu corpo. Talvez ela já estivesse morta há pelo menos um dia.

Altamiro Lopes dos Santos Neto está preso preventivamente na cadeia de Benfica na Zona Norte do Rio de Janeiro enquanto aguarda julgamento.


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Eles ainda não sabem como e se vão contar a notícia para a avó paterna de Patrícia, de oitenta e nove anos. "Como a gente vai contar para ela que a neta foi assassinada dessa forma?", se pergunta Lauro.

A avó chegou a conhecer Altamiro em uma ocasião em que ele e Patrícia se hospedaram na casa dela. Ela era única menina dentre os outros quatro netos homens e não era exagero falar que ela era a neta favorita da batchan.


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Duas semanas após a morte de Patrícia, na casa da família no Japão pouco se conversa sobre qualquer coisa, menos ainda sobre o que aconteceu. "Todo mundo ainda está em choque, ninguém fala abertamente até hoje. A gente não discute porque a gente não consegue".

A mãe deles tenta minimamente voltar ao dia-a-dia de antes da morte da filha. "Ela achou que seria melhor voltar a trabalhar e ocupar a cabeça do que continuar em casa como ela estava".

No Japão, a rotina é bem pesada. A mãe de Lauro trabalha em uma fábrica de cosméticos, o pai em fábrica de construção de soldas. São duas horas de ida e volta de van, oito horas na fábrica no mínimo. Às vezes, as horas extras são obrigatórias.

Falar sobre o assunto fora de casa, nas redes sociais, tem sido a maneira que Lauro encontrou para pensar menos no que poderia ter feito de diferente e de fato fazer alguma coisa: chamar a atenção das pessoas para a questão do feminicídio, relacionamentos abusivos e a importância de pedir ajuda.

"Ela nos poupou ao máximo até o fim da vida dela. Eu não posso nem imaginar pelo que ela passou. Ela foi extremamente forte. Ela deve ter pensando em pedir ajuda".

"É muito difícil até as mídias reconhecerem feminicídio. Eles tratam como se fosse uma fatalidade, uma briga de casal. Não houve briga, briga é quando o adversário consegue revidar, foi uma covardia", conta.

"Não houve briga, não houve fatalidade. É muito difícil reconhecerem que foi um feminicídio"

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Na minha última conversa com Lauro, ele tinha acabado de completar 19 anos – foi no dia anterior. "Lá para março a gente estava querendo ir em um sushi de esteira. Mas não tem motivo pra comemorar. De familiares, mesmo, nenhum telefonou, talvez por conta do que aconteceu. Precisa estar com cabeça pra isso".

O pai deve voltar ao Brasil nas próximas semanas para terminar de resolver questões relacionadas à filha que ainda ficaram pendentes. A mãe não tem vontade de voltar. "O que ela vai fazer? Não tem mais nada".

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