O impacto criativo do Harlem Renaissance

Entendendo o movimento artístico afro-americano e os abalos sociais mais importantes daquele período.

Harlem Renaissance (ou Renascimento do Harlem), foi o nome dado a um movimento artístico e revolucionário, desenvolvido dentro do Harlem, bairro de Nova York.

Ocasionado pela Grande Migração afro-americana a partir do século XX, desencadeou uma mudança revolucionária e intelectual na maneira como o negro se expressaria e integraria a sociedade dali em diante.

O movimento serviu como uma Meca cultural negra no início do século XX em Nova York, e acaba de completar 100 anos de existência. Este acontecimento foi um manifesto artístico e social que incluiria as novas expressões culturais afro-americanas a partir das áreas urbanas do Nordeste e Centro-Oeste dos Estados Unidos. O movimento durou dos anos 1910 até meados da década de 1930.

Esse período é considerado a época de ouro da cultura afro-americana, e acontecendo dentro de um único bairro, manifestou-se no palco, na música, nas ruas, na literatura, nos clubes, bares e cabarés. Performances do corpo negro nasciam ali, e com elas, as formas de expressão e o fatídico Movimento Pelos Direitos Civis.

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Negros do Sul dos Estados Unidos atravessavam o país em direção ao norte em busca de sonhos e de um padrão de vida justo. Com o fim da guerra civil em 1865, centenas de milhares de africanos recém-libertados da escravidão no sul começam a sonhar com uma participação plena na sociedade americana. Os negros buscavam naquele momento o empoderamento político, igualdade nas oportunidades econômicas e autodeterminação. Infelizmente, os anos se passaram e a vida das pessoas negras foi se tornando cada vez mais oprimida.

Em 1870 os afro-americanos já haviam perdido quase toda a esperança, pois do outro lado, no Pós-Guerra, a supremacia branca foi rapidamente reconstituída junto aos legisladores brancos do Sul. Foram estabelecidas novas leis estaduais e locais, que incluiriam a segregação racial (como o regime Apartheid implementado na África do Sul em 1848 pelo pastor-protestante Daniel François Malan, que posteriormente se tornaria uma lei na nos Estados Unidos, conhecida como Jim Crow). Isso tornou o afro-americano um cidadão de segunda classe (uma espécie semelhante ao chimpanzé), determinação que afastava a raça do negro da categoria humana "pura".

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Grupos de ódio de extrema-direita, como a Ku Klux Klan, conduziram campanhas de terror, perpetuaram linchamentos, estupros e intimidação. Aprisionaram pessoas negras, assassinaram mulheres, homens, crianças e jovens. Com a economia em expansão, o norte e o centro-oeste ofertavam empregos industriais para trabalhadores de todas as raças. Os afro-americanos, dessa vez, depositariam suas esperanças em ambientes supostamente tolerantes, localizados fora do sul, à procura de um sonhado melhor padrão de vida.

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A Grande Migração afro-americana de 1920 resultou em mais de 300.000 negros americanos realocados por todo o país. De 1910 a 1920, famílias afro-americanas protagonizaram um movimento migratório nunca antes visto na história.

Essa migração já era a comprovação de um fenômeno em construção, e o Harlem foi um dos destinos mais procurados por estas famílias. Foram mais de 300.000 afro-americanos realocados para cidades como Chicago, Los Angeles, Detroit, Filadélfia e Nova York. A Grande Depressão também estava em curso. Durante todo esse período, a lei Jim Crow e outros eventos afastavam com facilidade os negros no sul, que se deslocavam para o norte do país para melhores oportunidades de trabalho.

Por conta desse movimento cultural, o Harlem atraía algumas das maiores mentes e talentos criativos daqueles tempos. O bairro tem uma extensão de apenas três milhas, isso é: cerca de 25 quadras. Mesmo assim, atraiu quase 175.000 afro-americanos organicamente, dando ao bairro a maior concentração de negros no mundo fora da África naquele período.

O Harlem se tornou o destino para afro-americanos de todos os backgrounds, de trabalhadores não qualificados a uma classe média acadêmica. Era um local para se compartilhar experiências de emancipação da escravidão, de mentes oprimidas através da ignorância racial. O movimento cultural estava determinado a recriar a identidade do afro-americano enquanto pessoas livres. Algumas das maiores mentes e as mais brilhantes figuras talentosas eram atraídas para o Harlem, onde uma surpreendente variedade de artistas e acadêmicos afro-americanos, de forma coletiva e individual deixaram uma marca na cultura negra. As contribuições e colaborações levaram ao florescimento da cultura afro-americana, particularmente nas artes criativas.

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O Harlem tornou-se um catalisador para experimentações artísticas e intelectuais, que iremos mencionar logo à frente. A revivificação intelectual da arte e literatura afro-americana não estava somente confinada ao bairro do Harlem, em NY. No entanto, era o Harlem que atraía uma concentração notável de intelectos e talentos, que serviu como forma capital e eco-simbólica para esse despertar cultural dos negros. Um catalisador para experimentações artísticas; altamente popular para o estilo de vida nas noites.

A localização do bairro e a forma de comunicação dos afro-americanos ajudou a dar visibilidade aos novos negros e oportunidades de exposição jamais vistas em outros lugares. Localizado do lado norte do Central Park, Harlem era um antigo bairro residencial de pessoas brancas que, no início dos anos 1920, havia se tornado uma "cidade" negra, no distrito de Manhattan.

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Inevitavelmente, outras famílias negras que optaram por moradias fora do Harlem eram automaticamente identificadas como pessoas que faziam parte do Renascimento do Harlem. Todos os afro-americanos que faziam parte do Renascimento se cruzavam apenas em eventos especiais e estabelecimentos conduzidos ou administrados por famílias negras dentro do Harlem.

A cidade de Nova York tinha um mundo social negro extraordinariamente diverso, no qual nenhum grupo poderia monopolizar a autoridade cultural. Como resultado, era um lugar particularmente fértil para a experimentação da nossa cultura.

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Alain Locke foi o brabo que cunhou o termo “Negro Renaissance”. Para Locke, o termo tinha poder de impacto para romper os estereótipos da cultura afro, transgredindo ao intelecto cultural do povo negro. Tornou-se professor assistente da Universidade de Harvard em 1912, e retornou a Harvard para trabalhar em sua tese de doutorado "The Problem of Classification in the Theory of Value" em 1916, onde discute as causas para opiniões e preconceitos sociais, apontando que eles não são objetivamente falsos ou verdadeiros, portanto não são universais. Seu título de doutor em Filosofia saiu em 1918. Locke reconceituou a afro-diáspora para além dos estereótipos brancos que influenciaram os negros, tanto na relação com suas heranças, como também em saber lidar um com o outro.

Alain LeRoy Locke foi um professor, filósofo e escritor norte-americano. Patrono das artes educadoras, foi o primeiro negro a receber a Rhodes Scholarship (prêmio internacional de pós-graduação para estudantes da Universidade de Oxford). É considerado o pai do Renascimento do Harlem e um dos criadores do socialismo negro, juntamente com W.E.B. Du Bois. Em 1925, Alain Locke editou uma edição especial da revista Survey Graphic, e essa edição foi dedicada aos escritores negros contemporâneos daquele período. Sequencialmente, em 1927, lançaria seu livro de antologia literária "THE NEW NEGRO", que corroborou na origem do Renascimento do Harlem.  Esta antologia é apenas uma das muitas contribuições que Locke fez em seu esforço para expor a cultura negra à sociedade branca, na esperança de conquistar igualdade para nosso povo. Com a publicação de "THE NEW NEGRO", Locke se tornou o principal teórico e estrategista do Movimento Negro. Os críticos brancos foram forçados a levar a sério a escrita negra, o que serviu de união para os autores negros da época. Locke está para o "perfume da rosa", que contagiou uma geração de artistas e escritores negros que estavam pelo "corte da espada". Foi também figura importante no movimento de educação adulta na década de 1930. Descreveu o período como um amadurecimento espiritual em que os afro-americanos transformariam a desilusão social em orgulho racial. Tinha em seus discursos o pluralismo cultural. Era enfático em seus estudos, com teses sobre diferentes estilos de culturas e crenças em sociedades democráticas e harmoniosas.

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Cercado por intelectuais, escritores, intérpretes, cientistas, novelistas, pintores, poetas, prosistas, escultores e artesãos, o Renascimento do Harlem unia diversas formas de expressar a arte. Era como uma presença realista do que significava ser negro na América. Afastando-se da tradição da narrativa como escravos, os negros autores começaram a explorar questões que haviam evoluído a partir de seus conhecimentos empíricos, modos, meios e questões das consequências causadas pela escravidão. Os autores abordaram temas como racismo, pobreza, falta de identidade, masculinidade, feminismo e estrutura familiar por meio de prosas que evocavam realismo e imediatismo às mentes criativas daqueles artistas.

O escritor Langston Hughes chamou o movimento de "uma expressão celular da melanina ou da pele escura, bem como uma nova militância na afirmação pelos direitos civis e políticos".  Zora Neale Hurston, antropóloga, folclorista, roteirista, cineasta e escritora, celebrou a herança e a cultura afro-americana em suas obras. Dorothy West, escritora e contadora de histórias, escreveu sobre segurança social e finanças. Richard Wright escreveu poderosamente sobre raiva, frustração, violência e fragilidade. Outros autores do Renascimento do Harlem, incluindo Nella Larsen, Claude McKay, Wallace Thurman e Jean Toomer, produziram uma gama enorme de obras, abrangendo vastas experiências e emoções humanas. Essa lista de nomes do Renascimento do Harlem tinha os intelectuais mais instigantes daquele período. W.E.B. Du Bois, Marcus Garvey e Walter Francis With, a eletrizante performer Josephine Baker, a escritora e poeta Gwendolyn B. Bennett, Paul Robeson, Effie Lee Newsome, o fotógrafo James Van Der Zee, o escritor e pintor gay Richard Bruce Nugent, a designer que ficou conhecida como a escultora das experiências negras americanas Meta Vaux Warrick Fuller, as artes plásticas de Aaron Douglas, Loïs Mailou Jones, Richmond Barthé, Palmer Hayden, Norman Lewis, Charles White, Hale Woodruff, Beauford Delaney, Sargent Johnson, William Johnson, Augusta Savage, Horace Pippin, Laura Wheeler Waring, Charles Alston, Nancy Elizabeth Prophet, Henry W. Bannarn, William Ellisworth, Miguel Covarrubias, Malvin Gray Johnson, Archibald John Motley, Selma Burke e outros. Essa lista extraordinária de figuras negras ainda contava com o suporte de músicos lendários como, Louis Armstrong, Count Basie, Cab Calloway, Duke Ellington, Billie Holliday, Jelly Roll Morton etc.


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O clube local do bairro, Cotton Club, era o ambiente que personificava o Renascimento do Harlem. No auge do movimento, Harlem foi o epicentro da cultura norte americana. O bairro fervilhava com editoras e jornais (de propriedade e administração afro-americana), as famosas Record's (gravadoras musicais), teatros, boates, cabarés e até lojas de moda. Os cabarés do Harlem eram, talvez, a intercessão mais famosa da Era do Jazz. Reza a lenda que nenhum outro cabaré era mais fabuloso que o Cotton Club, muitas vezes chamado de Aristocrata do Harlem. Músicos e artistas afro-americanos eram convidados para se apresentar no Cotton. Ali, colavam apenas empresários brancos e ricos, que buscavam a vida noturna e divertida que o Harlem oferecia: um local no centro da cidade servindo álcool ilegalmente, afinal estava em vigor nos Estados Unidos a 18ª emenda constitucional - A Lei Seca, que durou de 1920 a 1933, proibindo a fabricação, transporte e venda de bebidas alcoólicas.

Com isso, o Cotton Club adaptou seu business, trocando boas doses de álcool por entretenimento negro para um público exclusivamente branco. Bem ou mal, o macete tornou o clube um dos maiores símbolos do Renascimento do Harlem. Posteriormente o clube passou por algumas reformas, dando capacidade para 700 lugares sentados, em mesas de jantar. O ambiente serviu como trampolim para a fama de músicos como Cab Calloway e Josephine Baker, artistas que possibilitaram novas performances musicais e muitas outras faces no palco. No entanto, alguns membros da comunidade apontavam que os poderosos artistas negros que supostamente ajudariam a redefinir o novo negro e a ascensão da consciência negra, haviam de se corromper, e até mesmo se autodestruir, em troca de uma audiência descomprometida com a realidade cultural que estava acontecendo no Harlem.


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O Renascimento do Harlem foi também um dos frutos colhidos no Movimento Pelos Direitos Civis. e ficou marcado como o primeiro movimento pró-negro que nunca foi criticado ou constrangido no mundo todo, em toda sua história. Na opinião popular dos brancos, era o "amadurecimento" do africano; uma espécie de herança Norte-Americanizada pós-escravidão. Um movimento que fazia redefinir a maneira como os brancos perceberiam uma América, agora também negra e/ou racializada. A presença individual de cada negro durante aquela época delineou a bravura dos negros na batalha da opressão, transformando a forma como era lida a cultura negra, passando a ganhar voz de reconhecimento e igualdade.

Junto à Grande Migração e o Movimento Pelos Direitos Civis, o Renascimento do Harlem é o mais significativo tesouro que sobrou da herança afro-americana até o momento. Cultura e valor eram a aliança mantida pela comunidade afro-americana. Os líderes do Renascimento do Harlem, como W.E.B. Du Bois, Alain Locke e Langston Hughes, pavimentaram o caminho para a marcha do Movimento Pelos Direitos Civis. A Renascença do Harlem alcançou o consentimento de todos os afro-americanos no país. Era um novo espírito de autodeterminação e orgulho coletivo. Era criada uma consciência social, um compromisso com o ativismo político. Entre bons e maus feitores, dali em diante tudo ou qualquer pessoa que oferecesse suporte para o Movimento pelos Direitos Civis passou a servir em prol da causa.

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A Grande Depressão e os tumultos trouxeram o fim do Renascimento do Harlem em meados de 1935. Milhares de pessoas resolveram vender as suas ações no dia 24 de outubro de 1929, fato que ficou conhecido como Quinta-feira Negra (o chamado Black Friday). Neste dia, mais de 12 milhões de ações foram colocadas à venda, o que deixou o mercado em pânico. Essa situação se estendeu por dias na outra semana. No dia 28, foram colocadas mais 33 milhões de ações à venda pelos americanos. Imediatamente o valor das ações despencou, e bilhões de dólares desapareceram. A economia norte-americana, assustadoramente, quebrou. Essa depressão causou uma verdadeira epidemia, e o Harlem sofreu danos de milhões de dólares em propriedades.

O início dos anos 1930 colocou o país inteiro de joelhos. Fundos financeiros foram esgotados com a baixa e, com ele, boa parte dos fundos de investimentos que forneciam apoio financeiro a escritores afro-americanos independentes e instituições públicas. O cenário ainda parecia oscilar. Sem saber como sua arte seria afetada, os afro-americanos continuavam a criar expectativas. Até que no fim da Lei Seca em 1933 tudo foi quebrado. Os 13 anos de vigor da 18ª emenda são considerados o maior fracasso legislativo de todos os tempos nos Estados Unidos. Com isso, os brancos não procurariam mais o álcool ilegal no Harlem, pois havia sido liberado em todo país. As artes afro eram apenas um passatempo para os brancos que visitavam o bairro durante todo aquele período de proibições. Organizações e clubes na parte alta da cidade, como o NAACP (Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor) e o URBAN NATIONAL LIGUE, anteriormente conhecida como Liga Nacional sobre Condições Urbanas entre Negros, que antes apoiava assiduamente o Renascimento do Harlem, resolveu optar por mudar seus interesses focando em questões econômicas e sociais e não mais raciais.

Alguns outros importantes residentes da comunidade do Harlem saíram do bairro à procura de trabalho por NY. Muitos desses residentes foram substituídos pelo fluxo contínuo de refugiados que viriam do sul, exigindo assistência pública também no norte e centro-oeste do país. A crescente dificuldade econômica do bairro e os efeitos da Grande Depressão chegaram a um estado crítico: um jovem furtaria uma loja de proprietários brancos. Ele foi preso pela polícia, a revolta gerada fez com que a comunidade afro-americana se rebelasse. O estopim! Nasce o Harlem Riot em 19 de março de 1935, descrito como o primeiro motim racial moderno no Harlem, tendo como alvo propriedades, e não pessoas. Durante a violência e agitação, três pessoas morreram e centenas ficaram feridas. Este ato final quebrou a noção do Harlem como Meca do novo negro. O motim foi uma sentença de morte para o Renascimento do Harlem.

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Não há como negar que o Renascimento do Harlem impactou todo o continente americano. O movimento chamou atenção não só pelas grandes obras de arte afro-americanas como também continuou inspirando e influenciando futuras gerações de artistas e intelectuais da diáspora africana. Um autorretrato da identidade de vida afro-americana e da cultura que emergiu dentro do bairro do Harlem foi transmitido ao mundo todo, desafiando os estereótipos racistas e depreciativos de uma sociedade elitista e adoradora do ódio no sul e outras regiões do país.

Com esse feito, o Renascimento do Harlem redefiniu radicalmente como as pessoas de outras raças enxergariam os americanos e entenderiam os afro-americanos. A experiência validou as crenças de seus fundadores e líderes Alain Locke, W.E.B. Du Bois e Langston Hughes, que acreditavam que a arte poderia ser veículo não apenas para promover a imagem positiva do afro-americano, mas também como impulso para melhorar nossas vidas como um todo. O Renascimento do Harlem foi um brilhante farol de esperança para a América Negra. Até certo ponto, serve como um memorial sobre como os negros podem ter uma experiência alegre e pacífica através das artes educadoras e comunicativas quando recebem oportunidades.  

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Texto por Vinícius Tex.

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