Gostar de travesti não é necessariamente fetiche

A ideia de "desconstruir desejos" talvez esteja mais gerando ansiedade por "parecer desconstruíde" do que nos desconstruindo de fato.

BuzzShe

Dois meses atrás escrevi, numa coluna aqui no BuzzFeed, sobre a possibilidade de desconstrução dos nossos desejos e a problemática envolvendo alguém sentir atração específica por corpos fora do padrão.

Vejam bem: alguém dizer que gosta de pessoas ruivas ou de bunda grande, alta, magra ou só malhadas, nada disso causa nenhum tipo de mal estar (no máximo, alguma pessoa mais milituda que escutar a frase irá dizer "nossa, você só gosta de gente padrãozinha" e ficará por isso mesmo).

No entanto, se você resolver assumir (e a palavra aqui é essa mesma, porque não é tão simples quanto fazem parecer a mudança dos nossos desejos) que sente atração por travestis ou homens trans ou pessoas gordas, peludas, negras, com deficiência, ou qualquer outro marcador corporal que nos vulnerabilize/estigmatize, aí é enorme o risco de a sua declaração ser problematizada como "fetichista". Sobretudo se você não fizer parte do grupo em questão.

Podem, inclusive, estranhar eu ter colocado junto grupos tão inesperados, mas a ideia é mesmo mostrar que a lógica afeta a esses e outros grupos, ainda que não seja da mesma maneira. Só se dar conta de que vinte anos atrás, quando tomei contato pela primeira vez com a pornografia virtual, produções envolvendo travestis caíam na categoria "bizarro", o que é capaz de ainda hoje acontecer com pessoas com deficiência, por exemplo.

Na minha memória, ainda está bem vivo o dia em que, no meio do Carnaval de 2017, eu e a gostosa da Gata de Rodas trocamos uns beijos no meio da multidão e uma pessoa, depois de ver os beijos, me acusou: "isso que você fez é fetiche".

Instagram / @gataderodas

Fiquei com aquilo martelando a minha cabeça tempos, tentando averiguar se fazia mesmo sentido a acusação, mas a única conclusão a que cheguei é que tanto eu sinto enorme desejo por ela, quanto ela por mim, e que pra nenhuma das duas esse desejo é problema.

Aliás, a gente só não se pegou mais vezes por falta de oportunidades mesmo, no que poderíamos denominar "capacitismo e transfobia estruturais": nem o lugar onde moro tem acessibilidade (as poucas vezes em que ela foi no meu apto, quase morremos tentando carregar, pelas escadarias, a ela e à sua tão poderosa quanto pesada cadeira), nem ela tem condições de receber visitas, especialmente as do meu tipo. Daí ficarmos reféns de hotéis caríssimos, os únicos com acessibilidade de fato.

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No Carnaval de 2019, a gente voltou a ser flagradas dando os nossos famosos beijos, mas dessa vez resolvemos tirar foto e postar nas nossas redes, o que gerou um furdunço inacreditável.

Pessoas dizendo tanto pra mim quanto pra ela que aquilo não fazia sentido, seja por eu ser travesti, seja por ela ser uma pessoa com deficiência. Ainda hoje, quase três anos depois, essa é uma das publicações que mais repercutiu de todo o meu instagram, o que diz do assombro que um episódio tão simples causou.

E, com isso, volto à pergunta: por que dizer que gosto de loira é ok e dizer que gosto de travesti é fetichista?

Uma coisa é a gente perceber que a indústria do pornô nos objetifica e alimenta essa curiosidade epidérmica sobre os nossos corpos ("nossa, nunca transei com travesti, queria saber como é", como tantas vezes já ouvi), outra bem diferente é a gente internalizar que revelarem desejo por nós ou, pior, assumirem esse desejo é, em si mesmo, uma fetichização.

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Desde que a gente nasce, vamos aprendendo, por um lado, que corpos deveriam nos atrair e, por outro, vamos descobrindo quais de fato nos atraem.

Em muitos casos, a pessoa consegue passar a vida sem conflito entre esses dois pontos, mas é comum também que a pessoa se descubra sentindo atração por pessoas trans, mas case com uma pessoa cis só pra não ter que comprar briga com a sociedade. E a briga pode ser realmente grande, então nem culpo quem escolhe esse caminho: quem quer ser mártir de uma causa que o seja, só não espere que todo o mundo siga seu exemplo.

A ideia, aliás, não é culpar ninguém aqui. Nem cobrar que se desconstruam e passem a amar/desejar corpos os mais variados.

Tenho horror a quem saia tentando constranger pessoas cis perguntando se elas já beijaram ou namoraram uma travesti na vida. Isso não prova absolutamente nada. Pode ser que nunca teve oportunidade, pode ser que as que a pessoa conheceu não lhe interessaram, pode ser que a própria travesti não quis. Pode ser por transfobia também? Com certeza absoluta, e acredito mesmo que o seja. Mas não penso que mudanças significativas aconteçam estimulando complexo de culpa em ninguém.

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O que eu quero, isso sim, é que a gente, mais do que desconstruir-se a ponto de não ter mais nada em específico que nos atraia ("eu gosto de pessoas", simples assim, como tentam nos fazer crer), eu quero é que a gente se sinta cada vez mais à vontade para assumir que temos, sim, inclinações particulares, nossas, e que a sociedade não nos julgue pelos relacionamentos que possuímos.

Esse é o primeiro passo: criarmos condições para que possamos viver sem medo os nossos desejos. O resto vem com o tempo.

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